SÃO FRANCISCO OLHUDO
Bárbara Helena
 
 

Era terça feira e Chico comprou um São Francisco olhudo.

Entronizou a imagem numa mesa especial e para fazer companhia ao santo adquiriu uma Nossa Senhora de Fátima branca e etérea de porcelana.

"...os banhos de mar no verão... mulheres de coxas grossas, fios ruivos aparecendo sob o tecido... sofrimento... gaivotas bailam no céu... entre as tulipas."

Depois Santa Rita, São Pedro, São Mateus e São Paulo. Evangelistas, discípulos, São Jorge cassado, com lamparina e tudo.

"os panos, o oculto...verde mar que abria claros na memória, cheiro almiscarado de tesão..."

Ou importantes: Jesus enorme, crucificado e quase despencando sobre o espectador. Obra caríssima, custou inteiro o magro salário da repartição.

" Pai culpava doído a mão franzina, tantas palmas duras quanto gaivotas ou pentelhos na imaginação doente... verdes mares... flores ruivas... cabelos."

Ocuparam o conjugado no Catete inundando de olhos vítreos, pátinas, sombras e dobras o espaço ao redor.

"...antes que eu me esqueça...o passado... corpos morenos na areia... música da dor latejando... e o quarto escuro... prazer..."

Contratou uma faxineira, endividou-se, perdeu a fome. Ligava do trabalho para casa, preocupado com incêndios ou acidentes. Na Internet buscava originais que adquiria com cartão vencido, entrou para o SPC, perdeu o emprego e a saúde.

"mãe nunca entendeu, rezas, banhos... este menino não bate bem... ao redor tudo claro, pentelhos bailavam, mãe e pai nunca foram."

Despediu a empregada que tirou lasca da Nossa Senhora marroquina e dedicou a vida a limpar, espanar, fazer brilhar dourados, acender faíscas em olhos de contas coloridas. Quando o espaço disponível acabou, foi obrigado a dormir na igreja, escondido de Padre Abílio.

"padre, benze ele... não adianta, é a idade... dobras que estalavam entre peixes ruivos, carne quente, no quarto nada, labirinto perdido, mar azul e vermelho me afoguei.

Ficava horas admirando imagens, maquinando roubos. Saqueava Igrejas durante a noite e dormia sentado no banco duro, diante do altar iluminado. A aparência imunda, cabelo enorme e unhas de rapina, assustava os fiéis. Ele se escondia nas sombras, cochilando em lugar meio escondido até a hora da caça.

"...a volta do prazer... o mar que se espraiava, abismo fundo de verão... calor incendiando.. água tépida... o banho, meu corpo, teus corpos, ruivos pelos, cabelos."

O padre tolerava suas manias, tinha pena dele, arrumava comida e alguns trapos para que se vestisse com decência. Aceitava sem agradecer. Tudo era detalhe. Orgasmos incomparáveis sacudiam seus segredos ao roubar mais peças para amontoar na casa onde mal podia entrar.

... e em todos eles vivi... corpos de agonia, panos que mal escondem, areia quente, saliva salgada, olho morando longe... em desvãos, detalhes, formas amadas. "

Quando ficou impossível abrir a porta de casa, criou sacos, em canto escuro do depósito de prendas.

Uma noite, Padre Abílio, já velho e com insônia, ouviu barulho na sacristia. Acendeu a luz e deparou com o espetáculo assustador: Chico, Corcunda de Notre Dame imundo e grotesco, masturbava-se sobre uma pilha de santos, inundando de sêmen uma estranha galeria de ícones religiosos.

Petrificado de nojo, expulso aos gritos o profanador.

O mendigo olhou assustado para ele, cobriu com cuidado seu tesouro e alongando os braços magros voou sobre a sacristia, planou no teto da Igreja, cada vez mais encolhido, e menor, até se transformar em pássaro, cinzento e esquálido, pousado sobre o ombro de São Francisco.

"Mãe, vou embora, agüento não. Mar de mundão de Deus... quero me afogar no oceano rubro dos pentelhos louros do passado, o tecido que encobre pecados e delírios... adeus"

Padre Abílio levou a mão à garganta e caiu num ataque fulminante. Nunca mais pôde falar - atribuíam a uma conseqüência do AVC o horror que demonstrava ao pássaro que fez ninho na imagem do santo.

Sacudidelas, vassouras ou veneno, nada tirou a ave de lá.

A lenda, espalhada entre os fieis, criou romarias diante do estranho animal de plumas. Alguns milagres foram atribuídos a ele - cegos voltaram a ver, paralíticos andaram. Depois, foi esquecido.

Padre Abília morreu, Igreja veio abaixo, mato tomou conta do lugar.

Entre touceiras e galhos, a estátua de São Francisco mantinha no ombro um feio pássaro cinzento.

Olhudo.

 
 

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