EMIL
Marlon Macarini
 
 

Mais uma noite de acentuada libação etílica e Emil praguejava a todos suas misérias. Sempre fora calmo, porém nessa noite ele queria outorgar suas inquietações às suas desprezíveis personagens.

Emil sentou-se defronte à lareira, em sua poltrona vetusta, haja vista o frio que fazia lá fora. Era outono. Outono este que durou uma eternidade e vinho nenhum apaziguou seus tormentos. Mais uma vez, Emil estava sozinho, sempre observador, amargurando o lento perpassar das horas. Maldizia a física e seus cientistas, e o único Schumann no qual cria despejava sua melancolia naquela sala à penumbra.

- Tolice! Imprecava. Estes tais efeitos da ressonância são apenas percebidos por aqueles que não sentem o peso das horas. Eu, amaldiçoado, tenho apenas o convite da pena e o sarcasmo do papel à minha frente, dizia Emil colocando o aromático fumo no cachimbo.

Fumar era um dos seus poucos prazeres e o fazia com um deleite ultramundano. Deixava na fumaça expelida pela sua boca, à guisa de alívio, suas sucessivas angústias.

Outro de seus prazeres era a escrita, se assim podemos dizer, afinal, constantemente indagava-se acerca do exercício poético: - Tendo a faculdade de não escrever, por que resolvi mutilar-me despojando no papel as controvérsias de minha tragédia?

Há muito resolvera ausentar-se dos homens, decidido a negar para sempre sua qualidade de social. Seus únicos companheiros eram o fumo e o álcool. Às vezes, na atmosfera pestilenta provocada pela sua causticidade, deixava-se levar pelo exercício poético, o qual torturava-o desmedidamente.

Emil conhecia profundamente o sofrimento. Muitas vezes intentando dispor-se de sua melancolia pegava um papel e depois de longas horas via o reflexo de sua ineficiência. Era terrível para ele não conseguir escrever. Não se contentava em apenas ler os clássicos, ele queria ser maior. Sempre escreveu acuado. Dizia que vozes impunham-lhe o ritmo e se não as seguisse, não teria mais sossego. Era insone, culpava as vozes por estar doente. Emil sempre fora doente. É possível reconhecer algum resquício de sanidade na arte poética?

Quando infante na escola primária, hoje com algumas décadas de vida, caçoavam de seu jaez esquálido, taciturno e silente. Fora um aluno exemplar, e naquela época começou a perceber sua inclinação à claridade da morte. Da adolescência de Emil tem-se notícias apenas de suas inúmeras fugas e tentativas de suicídio. Parece-me que, atualmente, esses desejos foram aplacados. Na escrita, suicidava-se lentamente.

Ele gostava de ver as pessoas chorando para tentar apiedar-se, nunca apiedou-se e abandonou de vez os humanos. Sobre as mulheres de sua vida, apaixonou-se apenas uma vez, mas ela cedeu ao primeiro que a flertou, não fora Emil. Descrente no amor, freqüentou bordéis durante sua vida inteira. Dos prazeres que as mulheres poderiam dar-lhe, pagou para tê-los. O ser para ele não passava de um subproduto do comércio.

Emil carregava a maldição em seu colo, e com seus dedos destilava o veneno da misantropia. Aos goles secos de sua amarga existência, tentou adocicá-los com vinho, à brisa tépida das alegrias expeliu as baforadas de seu sarcasmo.

No relógio a hora determinava, Emil sabia que dentro de alguns instantes sua resistência ia encontrar seu termo. Inexoravelmente, sua tão desejada senhora viria fazer-lhe um afago.

Levantou-se da sua poltrona e dirigiu-se ao espelho que se encontrava em seu quarto. Quando à vista de sua face tísica, deixou correr pela face um fio metálico, prateado, fruto de tanta resistência. Emil chorava convulsivamente. Era sua primeira vez. Deitou seus olhos sobre o reflexo da amargura e gritou de horror ante tamanha dor. Em sua face a angústia formava vincos e nos seus olhos faiscavam o fim, mas nem assim Emil se comoveu...

 
 

fale com o autor