A FILHA DO PROFESSOR
Luciana Priosta
 
 

Algumas pessoas têm em si a mágica dos elementais do ar e plantam-se do meio da casa feito redemoinho revolto sacudindo todos os esqueletos enterrados no fundo dos armários. E a vida fica em suspenso de olhos arregalados sem saber se se agarra a estante de livros ou deixa-se levar girando pelo céu afora.

Ela tinha a impressão de que todas as vezes que a filha chegava em casa era como se um vento doido invadisse a casa. A cada período de férias tinha certeza de que a casa não se agüentaria nos alicerces. E agora, esperava pela filha que ficaria definitivamente. Qualquer visita a colocava imediatamente em estado de alerta. O que dizer da volta definitiva? Com Aline, procurou aproveitar as últimas horas de serenidade antes de sua chegada. Encheu folhas e mais folhas de corações e estrelas coloridos a lápis de cera e assistiu cineminha de nuvens. A tarde correu modorrenta e era assim mesmo que ela desejava. Não tinha pressa alguma para que chegasse o fim do dia. Pressentia o que estava por vir e irritava-se. Sair de sua rotina, ter que expor-se a estranhos, tomar providência. Tudo isso a enervava, mas permanecia quieta. Portas e janelas sempre fechadas. Os visinhos não tem nada que espiar o que acontece dentro de sua casa. Aliás, conhecia-os apenas por seus nomes e cores das casas. A Dona Amélia da casa Azul. O Senhor Guilherme do sobrado branco. Não precisava e nem se interessava em saber mais que isso. Fazia um esforço enorme para que ninguém notasse que a rotina de sua casa havia se alterado tanto. Não tinha que dar explicações à gente desocupada.

Ficou pensando em Patrícia. A menina a seguiu dócil e obediente durante muito tempo, mas sempre notou algo de inquietante na filha. Uma semente de tempestade talvez. Desde cedo ensinou às suas filhas o valor da discrição e da retidão. Falar sobre sentimento é coisa para poetas. A serenidade e a constância moldavam o caráter. Nem mesmo quando o pai delas sumiu fez qualquer alarde. Procurou e conseguiu manter a casa em sua rotina e as coisas assentadas. Mas algo deve ter ficado fora do lugar pois por essa época Patrícia começou a mudar. Queria saber. Queria entender. Tudo. E Soeli não encontrava disposição em si para lhe dar qualquer esclarecimento. Concentrava toda sua energia em manter aparências. Então a brisa suave começou a crispar-se, mais revolta e inconstante a cada inspirar. Como um alvoroço, jogava sobre a casa os escombros de pequenos erros do passado e diminutas catástrofes domésticas. Sentia-se perdida diante de tamanha força crescente. Como conter o vento? Ficava ainda mais espantada ao sentir a força daquele elemento e sabe-lo seu rebento. Tinha medo. E passava os dias em sua eterna vigília assustada preparando-se sempre para o pior. A verdade é que a filha tornara-se alguém que não conseguia mais controlar, que não compreendia e que a colocava num eterno estado de alerta. Secretamente alimentava uma antipatia e um desconforto que eram devidamente guardados e trancados no fundo do armário. Junto a outros sentimentos, feito trastes que para nada servem e que no entanto, ninguém se dispõem a passar adiante.

Após escovar os dentes metodicamente, sentou-se no sofá a observar Aline. Uma criança noturna, quase melancólica. Mas muito calma, discreta. Ela amava aquela criança. Perdida na contemplação de sua filha, sentou e ficou esperando. Chegou a ser feliz em sua pacata rotina sem arrebatamentos até que o furacão rompeu pela porta. E de novo, como nas mil vezes anteriores, sentiu-se sem apoio sob os pés. Observou a filha entrar no quarto e a seguiu com os olhos. Não por estar genuinamente interessada em suas coisas, mas acostumara-se lhe vigiar os passos, assombrada por um medo irracional de que ela saísse voando pela janela.

- Quando vai ser o enterro?

- Não sei ainda. Estão nos esperando na casa da sua tia Dora.

A voz saiu-lhe num fio calmo e constante. Sabia que aquele tom ameno irritaria sua filha, mas ela devia aprender que nada se consegue com rompantes. Vivia perturbada pela idéia de que algum perigo real ou imaginado rondava quando a filha estava por perto. Mas dessa vez o pior realmente já havia acontecido. Além disso, a serenidade era-lhe algo natural, ou quase. Por tantos anos a exercitou tal estado de alma que já não sabia mais se fingia serenidade ou se apenas dissimulava seus sentimentos calmamente. Sua quietude era fruto de longo e laborioso exercício.

- Ta esperando o que então? Tira o carro enquanto eu arrumo Aline.

Resolveu não contrariar. Há muito esperava pelo confronto. Agora não tinha como evita-lo. Resolveu seguir o curso do acontecimentos e pronunciar-se somente quando não houvesse outro jeito. Estava abalada, quase triste. Não. Estava realmente triste. Afinal sua espera revelou-se infrutífera. Por tanto tempo esperou que ele voltasse. Ainda podia sentir suas mãos quentes a imobilizando pela cintura. Tardes inteiras perdidas entre almofadas e lençóis enquanto o resto do mundo permanecia na mais completa desordem. Dizia que gostava de seus cabelos em desalinho e lhe pedia que deixasse a casa pegar fogo. Patrícia tinha muito dele e sua presença revolta pela casa só tornava tudo mais difícil. Fez-lhe o pedido. Exigiu-lhe praticamente. Já que não estava presente para cuidar da educação das filhas, que conseguisse uma vaga no colégio. Ele não protestou.

- Eu tenho uma novidade para você!

- Novidade? Eeee.. deixa disso mãe, te conheço bem...

- Você foi aceita como interna no colégio Santa Tereza em Ribeirão Preto.

- Interna? Ah, mas não vou mesmo!

- Tenho um conhecido lá que é professor e ele conseguiu-lhe uma bolsa.

- Conhecido? Sei bem quem é esse seu conhecido. E o que foi que a senhora deu para ele em troca?

Foi a primeira vez que levantou a mão para sua filha. E ainda assim compreendeu que não era o tapa que uma mãe dá em uma filha. Era uma mulher agredindo outra mulher. A ventania durou toda a semana atormentando-a. Mas agüentou a ladainha estoicamente sem a mínima reação. Como previra, Patrícia sentia-se tão exaurida por fim que todos os seus planos de sumir de casa, colocar fogo nas malas, viver na Nicarágua não puderam ser colocados em prática. Ao atravessar os portões do colégio, Patrícia que até então esperneara e falara palavrões abundantemente tentando escandaliza-la, travou. Ela mesma sentiu-se abater por uma calmaria gélida. Patrícia, como se um interruptor qualquer se desligasse em sua cabeça, deixou-se arrastar pela mão para dentro do prédio. Depois de um beijo formal na bochecha, só voltou a vê-la depois de 2 meses.

Vez por outra ele ainda dizia que talvez voltasse. Poderia voltar. Era possível. Gostaria de voltar na verdade. E que ter Patrícia por perto era maravilhoso. Era impressionante como ela lembrava a mãe. Os mesmos cabelos escorridos e os mesmos olhos enormes. Apenas no temperamento diferiam completamente. Patrícia era uma pequena força da natureza preste a irromper a qualquer momento. E Soeli uma reta governanta alemã, dizia ele. Achava graça e a cada contato enchia-se de esperança. Ele ainda pode voltar. Ainda vai voltar. Certamente voltará. Só não imaginava recebe-lo em um caixão.

 
 

fale com a autora