ARRANHÕES
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Olga de Mello
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Os cartões, as carteiras, as fotografias se multiplicam fora dos armários. O cheiro de naftalina atordoa. Naftalina com papel coberto de fungos, algumas traças, pontos amarelos. Os olhos coçam, a garganta arranha, as narinas se fecham. As janelas escancaradas, cortinas amarradas e a luz se recusa a entrar naquele quarto recoberto de livros e madeira escura. As mãos estão sujas apenas por abrir tantos papéis dobrados, tantas folhas de jornal, artigos cuidadosamente arquivados para ninguém ler. Tudo fora planejado com alguma antecedência, mas nunca pensara que um dia abriria aqueles plásticos fechados com alfinetes de costura, que fincam sulcos nos dedos. Os alfinetes roçam a cutícula do dedo anular da mão esquerda. Um local permanentemente ferido, a pelinha se soltando sobre a unha, incômodo eterno. Por que ela fizera questão de guardar tanta inutilidade? Nada seria aproveitado, ninguém jamais pararia para analisar linhas, letras, páginas amareladas. O destino da papelada era oferecer informações que hoje se obtêm rapidamente com algumas tecladas num computador. Informações vagas, ralas, menos elaboradas que o vocabulário de qualquer artigo daqueles. Informações que se perderão mais rapidamente que as noções de fidelidade e culto à memória do que ela prezava. Acreditava que encontraria algo que ela deixara no meio dos papéis. Não havia qualquer bilhete, recado, um traço da passagem dela pelo planeta. Os únicos sinais de sua presença estavam no capricho do arquivamento daqueles papéis inúteis. Seu
dever era vasculhar os papéis, se enfronhar nos borrões.
Depois, transferir tudo para um imenso saco preto, que seria entregue
ao porteiro para vender ao burro-sem-rabo. Os papéis eram tão
antigos quanto os burros-sem-rabo. Reparou então um filete de sangue na mão esquerda. Precisaria tomar antitetânica, não sabia se o alfinete que causara o ferimento estava enferrujado. Mais dolorido mesmo, só o coração. |