UM CORAÇÃO NOVO EM FOLHA
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Luís Valise
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As agulhas espetadas no braço esquerdo limitavam seus movimentos, mas ao menos já respirava sem ajuda de aparelhos. No silêncio da noite o tempo custava mais a passar. Os números vermelhos do relógio digital banhavam as paredes nuas, e o quarto de hospital ficava envolto em brumas cabareteiras. Seus olhos abertos fugiam do sono, evitando a morte que sempre chegava nos sonhos. Embora um vigia guardasse a porta do lado de fora, ele sabia que a qualquer momento a vingança poderia entrar, tresoitão com sua boca negra, e um buraco na cabeça completaria o serviço que três balas em seu corpo apenas ensaiaram. Foram três balas quentes a penetrar como faca na água, um gosto de sangue na boca, a luz fugindo dos olhos para a nuca, e a imagem de dois corpos caídos à sua frente. Ele também jogara suas balas sobre os dois homens, um pá-pá-pá infernal, quebrando o silêncio da rua escura com gritos de medo e cheiro de pólvora. Os dois, policiais, ele, ladrão, puta-véia no mundo do crime. Já tinha levado chumbo no braço antes, mas agora era no corpo, todos perto do peito, perto da barriga, o calor e a respiração escapando pelos furos úmidos, último pensamento foi que estava de camisa nova, veja só que azar. Os outros dois tiveram o caminho encurtado, um com uma bala no pescoço, sobre o pomo-de-Adão, o outro com o fígado destroçado pelo tiro, morreram ali mesmo, antes que chegasse o socorro. Rua de muitas casinhas iguais, o povo em volta dos corpos, os homens chegaram, viram os seus mortos, pensaram acabar com ele ali mesmo, mas com toda aquela gente de testemunha ia dar bode, então foi jogado na jaula de uma viatura que deu muitas voltas antes de chegar no hospital, na esperança de que ele morresse no caminho, mas qual o quê!, chegou respirando fraquinho, fraquinho, sentiu que a maca corria pelo corredor, e quando tiraram sua roupa sabia que estava salvo. Os homens não se conformaram, e um disse "A gente volta!". Por isso seus olhos buscavam assunto nas sombras avermelhadas do quarto, os homens sempre voltavam quando ele dormia, e morrer de novo todas as noites dava nos nervos. O quarto tinha cheiro de morte. Virou a cabeça na direção do relógio, uma e dez, começo da madrugada, logo ela entraria para conferir sua temperatura, controlar o pinga-pinga do soro, ele gostava muito quando ela chegava, perfumada bem de leve, mas o suficiente para que ele ficasse imaginando coisas enquanto a mão macia pousava em sua testa, segurava seu pulso, o coração acelerava, ele dizia baixinho que era "Por você, guardei meu coração das facas e das balas por você", e ela sorria, falava "Deixa de besteira que eu sou casada", mas sorria, e ele dizia "Fica mais um pouco", e Edilene ficava mais um pouco, sem jeito, ele olhava seus olhos grandes e escuros, o corpo miúdo na roupa muito branca, e começava a ficar excitado, ela via o desenho sob a coberta, era hora de ir embora, e ele ficava de novo sozinho, no quarto avermelhado pela luz e pela paixão. O dia amanhecia quando ele dormiu. Os homens não vieram, e ele teve um sonho de paz. Ela não estava de branco, usava um vestido azul, e tinha as faces rosadas, os dentes branquinhos, e suas mãos não mediam a febre, apenas acariciavam seu rosto. Ele sorria, e beijava a palma da mão perfumada, beijava seu rosto, e ia beija-la na boca, quando ela dizia "Não, meu marido, meu marido!", e ele pegava o revólver, virava-se, não via ninguém, desvirava, e ela não estava mais ali, apenas ele e seu revólver inútil, e tinha vontade de chorar. Alguém abriu a porta, ele acordou assustado, era outra enfermeira, com o café da manhã. Deu a ele uma toalha molhada, ele limpou o rosto, os olhos. Pediu para fazer xixi, a moça entregou o papagaio, e ficou ali ao lado da cama. Ele colocou a vasilha entre as pernas, sob as cobertas, e urinou sem se importar com a enfermeira. Desde que conhecera Edilene, as outras mulheres eram apenas isso, mulheres. Homem dado às putices rubras das marafonas, tinha o coração virgem de amor, esse que nos faz conversar com estrelas e ver duendes atrás da cortina. Até conhecer Edilene, e os mistérios que nos deixam encantados. Seu estado geral melhorava a cada dia, e logo teria alta. Iria para a prisão, aguardaria o julgamento, e cumpriria a pena. Quando saísse, iria buscar Edilene para viver com ela o resto do tempo. Tinha tanta certeza disso que falaria com ela antes de sair. Um dia o doutor entrou com a prancheta na mão, todo animado, "Muito bem, seu Jorge, o senhor vai pra casa depois de amanhã. Que tal?" Ele ficou sem saber se a notícia era boa ou não. O médico ainda deu um tapinha em seu ombro, "Beleza de recuperação, saúde de ferro!", e, ficando sério de repente, "Tome juízo. Você escapou por alguns centímetros. Da próxima vez poderá ter menos sorte. Cuide-se." O quarto ficou ainda mais silencioso depois que o médico saiu. Ele levantou-se, andou até a porta, abriu-a com cuidado. Sentado em uma cadeira, o vigia cochilava com o queixo encostado no peito. A idéia de fuga brilhou em seus olhos. Fechou a porta, andou em direção ao armário, abriu a porta para pegar a roupa, e viu a camisa que usava na noite do tiroteio. Segurou-a entre os dedos. O sangue ressequido manchava a frente e as costas da camisa. Três furos. Fechou os olhos. Quatro sílabas: E-di-le-ne. Voltou para a cama. Naquela noite Edilene bateu na porta antes de entrar, e mesmo antes de abrir sentiu cheiro de perfume. Entrou com cuidado, ele poderia estar dormindo. Chegou perto da cama. Estava acordado. Bem barbeado, penteado, e cheiroso. Ele deu um tapinha no colchão, "Sente-se aqui, Edilene", ela não podia sentar na cama, era norma do hospital, explicou, ele repetiu o tapinha, "Sente-se, Edilene", ela vacilou, acabou sentando na ponta da cama, as mãos cruzadas no colo. Perguntou aonde ele tinha arranjado perfume, "Pedi pro paciente do 302, aquele do acidente de carro. Preste atenção no que eu vou te dizer. Eu sei que você é casada. Você sabe que serei preso. Então você será casada enquanto eu estiver preso. Quando eu sair, vou buscar você, e iremos viver juntos. Você será a primeira e a última mulher da minha vida. E eu serei o segundo e o último homem da tua. Escreva aí teu endereço, daqui a alguns anos eu vou te buscar." Edilene não acreditava no que acabara de ouvir. Ficou olhando Jorge nos olhos, e olhou até compreender que ele falava a sério. Então, escreveu seu endereço no pedaço papel, e guardou-o dentro da gaveta do criado-mudo. Só então, sem mais uma palavra, encostou a mão na testa do homem, pegou seu pulso, viu o desenho sob a coberta, virou-se e saiu. Dezoito anos. No camburão abafado o calor era insuportável. Apenas uns furinhos na lataria para ventilação. Lá dentro, na escuridão, algemado, ele pensava em Edilene, "Apenas dezoito anos!", e na história inventada pelo advogado, outro puta-véia, "Legítima defesa, Meritíssimo, os dois chegaram atirando, sem se identificar, meu cliente apenas se defendeu". Sem testemunhas, só dezoito anos. Trinta e cinco. Sairia com cinqüenta e três. Muita vida pela frente, cheia de felicidade. E seria isso mesmo, não fosse uma treta que pintou no jogo de futebol, ladrões contra maconheiros. Um maconheiro deu-lhe uma entrada firme, pra quebrar, ele chiou "Ô meu, pega leve, porra!", o outro foi pra ignorância "Pega leve o caralho, futebol é pra homem". Então, de noite, o maconheiro deu bobeira, tomou uma facada no peito, uma só, bem funda, ninguém viu, mas a encrenca no futebol fechou o inquérito: mais seis anos. Cinqüenta e nove. Quantos anos tinha Edilene? Os cabelos não cairam, só ficaram brancos. A barriga, bom, a única coisa que cresce na cadeia é a barriga. Barriga e safadeza. Ele saiu barrigudinho e cabeça branca. Foi direto para a Igreja da Justiça Divina, procurar pelo Jurandir Fala-Fala, pastor e fundador da igreja, que esteve uns anos preso com ele por tentativa de homicídio, "O malandro engravidou minha filha e não quis casar. Pode?", quatro facadas, mas o cara não morreu. O Jura tinha falado "Quando você sair, me procure, quem sabe eu te arranjo um emprego", então ele foi. E não é que o outro arrumou mesmo um emprego? Aprendiz de mecânico. "Aprendiz com essa idade?" os mecânicos gozavam, e até arrumaram um apelido, Matusalém, mas ele não se incomodou. Com o primeiro salário, comprou roupa nova. No sábado tomou banho, estreou a roupa, e foi para o endereço da Edilene, orgulhoso das unhas sujas de graxa. Por baixo da camisa, por via das dúvidas, levava um punhal. Tomou dois ônibus, andou mais um pouco, e foi chegando devagar, olhando pros lados. Na esquina, conferiu o nome da rua. Era ali. Foi seguindo a numeração, um cabrito pulando no peito, viu a casa. Um portãozinho de ferro pintado de azul, um alpendre com piso de cerâmica vermelha, um carramanchão que subia pela coluna do alpendre e se enroscava nas madeiras que sustentavam as telhas. Parou, hesitou, andou até a outra esquina. Era um bar. Entrou, pediu uma cerveja. Quatro homens jogavam dominó, e pararam de jogar para avaliar o estranho. Jorge sentiu com o braço o cabo do punhal. Virou de costas para a mesa e tomou um gole de cerveja. Com aquelas unhas, ninguém pensaria que ele era um malandro. O dono do bar passava um pano no balcão. Vidros enfileirados mostravam iguarias: sardinhas enroladas em molho escabeche, couro de porco frito, daqueles que ainda conservam os pelos do animal, ovos coloridos, roletes de queijo provolone no azeite. A súbita certeza do tempo perdido. Pediu um pratinho com porção variada dos acepipes. Tinha parado de fumar. A impaciência queria um cigarro. "Um maço de Babilônia e fósforos, por favor." As primeiras tragadas fizeram-no tossir. Depois ficou bom de novo, como era antes. Pediu outra cerveja. Os homens não pararam mais o jogo. A tarde ia caindo, e ele ali, buscando coragem pra ir chamar Edilene. Vinte e quatro anos esperando por esse instante, e, de repente, aquele vacilo. E se o marido reagisse, e ele tivesse que matar de novo? Não era isso que queria, só queria abraça-la e leva-la para longe, só para ele, e durante as noites sentir sua mão na testa, seu cheiro de alfazema, montar seu corpo miúdo, era isso que ele queria. Quatro cervejas, a falta de hábito, sentiu uma tonteira. Acendeu outro cigarro. A fumaça forte amargou a saliva. Jogou o cigarro fora. Não queria estragar o primeiro beijo. Pediu a conta. Atrás do balcão o espelho mostrou a figura envelhecida, a boca besuntada de molho escabeche. Edilene teria um choque. Guardou o troco no bolso. Era quase noite. Os quatro homens estavam entretidos no jogo. O dono do bar passava o pano no balcão pela enésima vez. Jorge sentia o gosto da sardinha misturada com torresmo. A vida tinha que ser vivida. Os dedos com unhas sujas de graxa se fecharam em torno do cabo do punhal, e a voz cheia de autoridade anunciou: - Ninguém se mexe, é um assalto! |