PAPÉIS E CASCAS
Leo Mesquita
 
 

Pedaços de chocolate na boca lhe dão mais prazer que transar. O único problema é que Carla é gorda. Cheia de pelancas arrepiantes. A culpa foi do tempo, que diminuiu seu metabolismo. As calorias que antes eram queimadas, agora viraram banha e visitam constantemente as suas nádegas e barriga. Pouco a pouco novos cantos do seu corpo vão inchando.

Carla fez um pacto consigo mesma, decidiu que toda vez que colocasse qualquer doce na boca iria punir-se. Iniciou a partir desta promessa, um processo de usar uma folha de papel para cortar a própria pele. Passava rapidamente na superfície de algum ponto da mão, braço, da barriga e sua pele branca rosada sentia uma queimação rápida. Um ardido que não desaparecia, fazendo com que esquecesse das porcarias açucaradas. Nas crises de abstinência do começo, agia radicalmente, cortando a ponta dos dedos. Assim toda vez que esticava a mão para fazer algo, lembrava com uma pontada doída o que não deveria fazer.

Carla também sofria com as propagandas oportunistas da televisão que mostravam pessoas felizes e esbeltas. Todas comendo seus doces deliciosos e sorrindo em um mundo glacê. Ela assistia com ódio as crianças nadando em rios de Nescau, observava a sereia com uma barra de chocolate na boca. O rapaz que se jogava do prédio atrás de uma bolacha. Mas estava feliz, pois as feridas abertas nas suas mãos a salvaram da perdição. Com tantos fios vermelhos da carne viva, suas mãos ficavam entorpecidas. Teve então que começar a laminar sua panturrilha e pés. Assim toda vez que andava ouvia a dor dizendo "não coma chocolate sua gorda burra".

Nos restaurantes por quilo era torturada pelas pessoas saboreando, sem culpa nenhuma, as malditas sobremesas. Olhava para sua palma da mão e via os riscos rosados de carne, só para lembrar que se comesse, mais um risco iria surgir. Carla tinha chegado a um ponto de conversar com suas chagas. Elas lhe diziam, "Tem um espaço no dedo mindinho para você botar um colega". Ia então ao banheiro, tirava da bolsa uma folha dobrada de sulfite 75g, abria com muito cuidado e deslizava a navalha perfeita do papel na pele virgem do mindinho. Sangrava um pouco. O sangue por uma fração de segundos tinha aparência de calda de morando, mas o leve cheiro das hemácias de mãos dadas com o ardor repentino, trazia Carla de novo para a realidade.

Passou o tempo e Carla foi perdendo peso aos poucos. Já cabia de novo nas calças antigas. Conseguia olhar-se no espelho sem problemas. Tinha esquecido o açúcar, as perdições da glicose, estava enfim livre, graças ao sacrifício na própria pele. Chegava em casa todos os dias e comia sua salada, frango grelhado sem pele, o suco natural com adoçante e ainda se dava ao luxo de uma maça. Não fumava, não bebia e sentia-se cada vez mais leve. Livre para começar uma nova vida.

As feridas ainda faziam parte de sua vida. Não tinha parado de se mutilar, muito pelo contrário. Não era mais para esquecer dos doces, mas para sentir algo novo. Carla cortava as feridas expostas, uma sensação muito mais intensa do que abrir a derme virgem. Era a traição máxima dela contra o próprio corpo, de não deixa-lo se recuperar. Nessa nova fase Carla começou uma coleção de cascas de machucados. Agora usava o estilete e mesmo depois de arrancar as cascas, ainda continuava cutucando a nova pele que surgia. Já não fazia mais incisões retas, ia além e desenhava cirurgicamente quadrados, círculos, que depois de prontos iam sendo amputados. Todas as cascas duras e secas eram guardadas em uma caixa e categorizadas. Ela sempre abria para espiar, estava muito orgulhosa destas novas obras vindas do seu corpo.

 
 

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