DAS DORES
Beto Muniz
 
 

Não quero que sintam pena de mim, nem precisam demonstrar solidariedade à minha dor. Desculpem-me, mas preciso apenas escrever um pouco sobre essa ferida que trago no peito e depois me calar, continuar a vida.

Ainda não assimilei, ou não me acostumei a pensar que para o resto de minha vida meu pai não estará lá, na casa de Minas Gerais, no quintal onde fui criado e para onde sempre pensei que voltaria um dia. Papai não era rico, não tinha grandes posses, não deixou bens bastantes que pudessem ser divididos. Herdei apenas lembranças que agora estão se tornando saudades imensas. Quando nos mudamos para Minas, eu tinha seis anos. Nascido em São Paulo, capital, não conhecia nada da roça, tinha medo de formigas, aranhas, sapos, galinhas, porcos, cavalos. Nunca tinha visto uma vaca, uma plantação de arroz, um pé de mandioca, de milho. Papai ria dos meus sustos, dos medos, dos encantamentos, das descobertas e improvisos para me adaptar a nova realidade. Eu era o filho mais velho e companhia para quase tudo. Numa das idas até a vila eu estava com diarréia, reclamei e ele parou. Mandou que eu fosse para detrás da touceira e eu fiquei parado, olhando a estrada de chão batido sem nem imaginar o que era uma touceira. Fiquei ao lado da charrete, mudo, olhando para cima, buscando no rosto sério do meu pai um esclarecimento. Alheio, segurando as rédeas, ele não percebeu minha agonia e então lhe perguntei onde era a touceira. Ele riu, apontou o capinzal e falou: "Aquela moita grande de capim". Fiquei muito tempo achando que aquela moita, e só aquela, tinha o nome de touceira.

A casa onde ele morava está a seiscentos e quarenta e oito quilômetros do meu apartamento em São Paulo. Percorri essa distância muitas vezes nos últimos vinte e dois anos. Em dezembro passado fui com a família passar o natal em Minas Gerais, filmei irmãos, irmãs, sobrinhos, sobrinhas, cunhados, cunhadas, esposa, filhos, mãe e pai durante os três dias que passamos juntos. Eu não sabia que seria a última vez que veria meu pai vivo, se soubesse teria me demorado mais tempo no close que fiz. Ele não gostava de fotos e sorriu amarelo para a lente da filmadora. Numa demonstração de respeito a sua vontade em ficar anônimo, desviei do seu rosto lentamente e, sem parar a filmagem, focalizei o rio que passa no fundo da chácara. Meu pai, então com sessenta e seis anos de idade, um ano de aposentadoria, tinha encontrado o local ideal para passar o resto de seus dias. O Rancho! E foi lá que ele deu adeus ao mundo. Usufruiu tão pouco da aposentadoria, tão pouco do rancho, do barco, das pescarias diárias, tão pouco da vida sem obrigações e horários fixos. O Rancho não ajudaria em nada a engordar a herança e talvez por isso, decidimos, os filhos, jamais vendê-lo. Porém, já que minha mãe veio morar novamente em São Paulo, duvido que tenhamos motivos para voltar lá nas férias.

Trinta e cinco anos se passaram. Voltei ao tempo das adaptações para a nova realidade, como se ainda fosse o menino de seis anos... Estou descobrindo, no decorrer dos dias, que independente de minhas vontades a ferida se abre através dos meus olhos e as lágrimas correm livres diante de afazeres simples, como, por exemplo, liberar espaço na agenda telefônica.

O telefone de Minas Gerais nunca mais será usado... Deletei "MEU PAI" na agenda e as lágrimas correram, pesadas, um bom tempo. Antes, bastava acionar a tecla send no celular para atenuar essa saudade.

 

Entardecer no Rancho,
O rio ao fim da trilha
Lua já posta no céu.

Foto de dezembro de 2004

 
 

fale com o autor