PASSAPORTE PARA A FELICIDADE
Patrícia da Fonseca
 
 

Tudo pronto para a minha viagem. Meu avião sairia às nove horas da noite e nem bem era meio dia eu já estava com as minhas três malas no meio da sala. Só faltava viajar. Pela centésima vez, verifiquei a documentação necessária: visto, dólares, passaporte. passaporte. passaporte? Onde estava meu passaporte?!

Dei um berro que deve ter sido ouvido no outro mundo. Vários rostos se voltaram para mim, espantados. Eu senti que estava pálida e minhas mãos tremiam, enquanto segurava a carteira. Falei, com a voz esganiçada:

- Meu passaporte sumiu!

Comoção geral. Minha irmã saltou do sofá e arrancou a carteira das minhas mãos. Dólares, documentos, tudo foi jogado em cima da mesa, na ânsia de que eu estivesse variando no meu nervosismo. Espalhamos as coisas, sem ordem alguma. Eu me perguntei se deveria chorar ou gritar ou fazer as duas coisas juntas. Meu sobrinho de 12 anos também se uniu a nós. E ele foi o primeiro a dizer:

- Se a tia não achar o passaporte, não vai casar.

Entrei em pânico. O João Carlos estava me esperando nos Esteites. Fazia um ano que ele vivia em Miami e nos correspondíamos por mail ou falávamos por telefone. E agora eu iria ao encontro dele, nos casaríamos e eu passaria a morar nos Estados Unidos. Vida nova, marido novo, país novo. E cadê aquela droga de passaporte?

- Calma - disse minha irmã, tentando me acalmar - Ainda faltam algumas horas para você ir para o aeroporto. Nós vamos encontrar este maldito passaporte.

Meus sonhos, porém, já haviam se desvanecido e eu chorava, sentada no sofá, desconsolada. Em meio as minhas lágrimas, anunciei:

- Vou telefonar para o João Carlos e vou avisar que não vou mais.

Minha mãe deu a maior força:

- Isto mesmo. Ligue para ele e diga que você decidiu ficar pelo Brasil mesmo.

Olhei para minha mãe, através das minhas lágrimas. Mal podia enxergá-la direito, mas eu percebi algo estranho por trás daquele olhar dela.

- Devolva meu passaporte!

Era quase uma exigência. Minha irmã me olhou e me repreendeu, severamente:

- Cris, o que é isto? Você está acusando nossa mãe de.

- Estou, sim - e prossegui, implacável - Devolva meu passaporte agora mesmo.

- Não devolvo, não - respondeu mamãe, tão implacável quanto eu.

Abri a boca, espantada. Que ousada! Tanto meu sobrinho como minha irmã a encararam, atônitos. Não é que a velha havia surrupiado meu passaporte para que eu não casasse com o João Carlos? E ela continuou, calmamente:

- Para que se casar com aquele vagabundo? Se ele não deu certo no Brasil, você acha que vai ser feliz com um entregador de pizza nos Estados Unidos? Em menos de um ano você estará de volta, chorando, arrependida. Então é melhor você nem ir. Nenhum homem vai dar a você a mordomia que sua mamãe aqui lhe dá. Roupa lavada e passada, comida quentinha.

- Mãe - e eu a interrompi, furiosa - Não queira interferir na minha vida. Vou contar até três. No três, quero meu passaporte aqui na minha mão. Um, dois, t...

- Esperem, esperem um pouco - pediu minha irmã - Cris, por favor, interrompa a contagem. Acho que a gente pode resolver este problema conversando como pessoas adultas.

- Quem é adulto aqui? - esbravejei - Eu quero ir para o Estados Unidos e ser feliz com meu entregador de pizza! Só isto! E se tiver que limpar o chão, não vou me importar desde que eu esteja ao lado do João Carlos!

- Limpar o chão? - e minha mãe riu, debochando da minha cara - Você mal sabe a diferença entre um detergente e um sabonete líquido e ainda quer ser faxineira?

Antes que eu fosse capaz de partir para a ignorância, minha irmã pegou mamãe pelo braço e a arrastou até o quarto. Fiquei na sala, entregue às lágrimas, mal escutando o que meu sobrinho dizia para me consolar, embora eu percebesse que ele achava aquilo tudo uma comédia. Imaginei que no dia seguinte eu seria o assunto da turma de amigos dele.

Não demorou quinze minutos para que minha irmã retornasse, de posse do passaporte. Nem acreditei quando o segurei, porque eu o via, literalmente, como o passaporte para minha felicidade. Enquanto nós duas juntávamos os dólares, o visto e os outros documentos que ficaram espalhados pela mesa, eu perguntei, curiosa:

- O que você falou para convencê-la?

- Não falei grandes coisas. Apenas garanti que ela também vai para os Estados Unidos, morar com você.

- Como assim morar comigo?!

- Morar com você. Roupa lavada e passada, comida quentinha. nossa mãe somente quer proteger você. Quer coisa melhor do que ela estar lá, ao seu lado?

- Não acredito que você propôs uma coisa destas a ela!

- Foi a única chance de salvar sua viagem. Ela ameaçava rasgar o passaporte e jogar os pedaços pela janela. Veja, aqui está um pouco rasgadinho.

- E você vai ficar morando no Brasil, sozinha? - perguntei, irônica.

- Não, eu vou junto com ela. Eu e meu filho.

Faltavam nove horas para o avião partir, mas eu decidi sair de casa naquele momento. Ou melhor, fugir era o termo exato. Saí com as malas debaixo do braço, sem me despedir de mãe, irmã ou sobrinho. Ataquei um táxi na rua e rezei para que o consulado americano não desse o visto para nenhum dos três.

Hoje faz um ano que vivo aqui nos Estados Unidos. O J.C. continua entregando pizza e eu me tornei uma doméstica de relativo sucesso. Já tenho um carro e achei um computador no lixo. Agora consigo falar com minha mãe e minha irmã, via e-mail, sem maiores problemas. Mas não agüento mais Mac Donalds e Coca Cola. Esta noite sonhei que estava me afogando num prato de feijão com arroz.

 
 

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