BEIJO NA BOCA
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Luís Valise
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- O quêêê??? NEM MORTA!!! Quem estava por perto nem ligou, Malú costumava pontuar suas conversas com exclamações e desabafos em voz alta, mas para João Gusmão aquelas palavras ribombaram como badalos de catedral. NEM MORTA!!! Ele ainda conseguiu um sorriso vietnamita, olhou para os lados para certificar-se que ninguém mais ouvira, e balbuciou: - Pôxa, também não é pra tanto, né? Mas ela não estava mais ali para ouvir, e ele ficou vendo seu sonho se afastar, o vestido curto oferecendo as covinhas dos joelhos, a cintura delicada segurando as ancas que abriam alas e murmúrios por onde ela passava. Maria Lúcia, sua paixão desde sempre, cravara até o cabo o punhal da desesperança, e o deixara lá, para que ele nunca mais esquecesse, nem se atrevesse. João Gusmão rodou os cubos de gelo no copo vazio, hesitou entre uma dose simples ou dupla, mas acabou indo embora. Para ele, a festa, ou, melhor dizendo, a vida, não mais teria graça. Quem deu a notícia foi o Osvaldinho Bom Cabelo: - Vocês viram a mina que mudou pro 208? O 208 era o sobrado mais bonito da rua, e estava vazio desde que uma família de alemães se mudara para o Paraná. João morava no 211, do outro lado da rua, e vira o caminhão de mudança encostado no 208, sem dar maior atenção. Bom Cabelo acrescentou: - Deve ter uns treze anos, e é um tesãozinho. João Gusmão fechou a cara, chamou o outro de tarado, onde já se viu, treze anos ainda é criança! Ele já tinha dezoito, uma irmã de doze, e avisou: - Bom Cabelo, vou te dar um toque: se falar assim da minha irmã leva uma muqueta! O outro afinou: - Claro que não, João, tua irmã é limpeza (e ainda nem tem peitinho, pensou). Alguns dias depois, chegando da escola, viu visitas na sala. Sua mãe apresentou: - João, esta é dona Marineide, que mora no 208, e aquela é a Maria Lúcia. Estávamos falando de você agora mesmo, a menina tem dificuldade com a matemática, e como você está fazendo cursinho para engenharia, sugeri que talvez você pudesse dar umas aulas para a menina. O que você acha? João era simpático e educado, cumprimentou dona Marineide, e ao pegar a mão da menina sentiu um frisson a percorrer-lhe a espinha, que olhos, que sorriso, que perninhas! Um short bem curto mostrava as coxas da menina, João lembrou do Bom Cabelo (porra, eu sou pior que ele!) e concordou, olhando para a mãe da diabinha: - Mas é claro, ajudo no que puder, é só dizer quando ela quer começar! Ficou acertado que as aulas seriam às segundas, quartas e sextas, das quatro às seis da tarde. Então, na segunda, João gostou da voz e do olhar da menina; na quarta viu pelo decote da sua blusa o par de peitinhos nascentes; na sexta não conseguiu dormir, e sentiu o que é estar apaixonado. Maria Lúcia ria muito, olhando bem dentro dos seus olhos, e ele ficava em dúvida se era namoro ou amizade. E assim o tempo foi passando, ele ensinando, ela já nem precisava das aulas, mas o hábito e os bons momentos fizeram das tardes de segundas, quartas e sextas compromisso sagrado. Aos dezoito anos Maria Lúcia era um mulheraço, e quando João se formou engenheiro convidou-a para dançar a valsa. Sua mãe ficou um pouco sentida, esperara aquele momento toda a vida, mas o semblante radiante do filho compensava tudo. Formaram o casal mais bonito do salão, e teriam dançado por toda a noite, não fosse pelo fato de Maria Lúcia começar a flertar com um formando da mesa ao lado. Seu nome era Werneck, e ele, sem perder a chance, perguntou ao João se tinha algum problema. João disfarçou magnificamente: - Claro que não, ela é como se fosse minha irmã, podem dançar à vontade. E os dois não se largaram mais. João passou todo o tempo indo de mesa em mesa, bebendo em todas elas, até não saber mais de nada, e só voltar a si no outro dia, em casa, na cama, ainda com a calça e a camisa do smoking. A cabeça doía horrivelmente, e ele chorou baixinho como choram os machos, ao sentir que sua vida acabava justo no começo. O namoro de Maria Lúcia com o Werneck seguiu em frente. João meteu a cara no trabalho, compensando a perda amorosa com ganho financeiro. A dor pela perda de Maria Lúcia já era grande, e ficou insuportável quando foi convidado para padrinho do seu casamento. Sem ter como recusar, vingou-se chamando Werneck para trabalhar consigo em troca de um salário irrecusável. Tão logo voltou da lua-de-mel, Werneck viu-se às voltas com uma montanha de trabalho, que o obrigava a chegar muito cedo, e sair sempre tarde da noite. Mesmo assim, ou talvez por isso mesmo, o casamento seguiu em frente. Maria Lúcia resplandecia felicidade. O casal comemorou cinco anos de casamento com uma festa. João valeu-se da condição de padrinho e fez questão de pagar a despesa. Contratou buffet de primeira, conjunto musical, palhaços para entreter a criançada (Lúcia e Werneck tinham um menino que chamava João de tio). Dezenas de parentes, e amigos de escola e do trabalho, divertiam-se como se formassem uma só família. Maria Lúcia vestia um tomara-que-caia verde esmeralda que realçava sua pele queimada de sol. Seus grandes olhos escuros hipnotizavam João Gusmão, mas ele estava mesmo era enfeitiçado por sua boca. Desde que a conhecera, menina ainda, João sentira grande vontade de beijar aqueles lábios cor de cereja, e hoje, talvez pelos uísques a mais, talvez pela autoridade que se atribuía, não resistiu, e segurando-a pelo antebraço, levou-a para trás de uma coluna, a pretexto de contar-lhe um grande segredo. Não mentia. Olhou-a bem nos olhos, baixou a voz: - Malú, quero que você seja a primeira a saber que estou apaixonado. A moça reagiu com espanto: - É mesmo? Conta, conta, quem é a sortuda? João tomou coragem: - Você. É você. Desde o primeiro dia em que te vi. Durante todo o tempo em que te ensinei matemática. Desde que você casou com o Werneck. Até agora. Eu te amo, e te amarei por toda a minha vida. Maria Lúcia ficou olhando para ele com os olhos muito abertos, a boca também entreaberta, os dentes brancos realçando o vermelho dos lábios, João se animou: - Não quero que você deixe o Werneck. Quero apenas um beijo teu. Um só. Um beijo na boca. Foi aí que, soltando o braço num repelão, Maria Lúcia disse aquelas quatro palavras, virou-se, voltou para a festa, e nunca mais sorriu para o João, nem falou mais com ele, a não ser o estritamente necessário, e sempre na presença do marido. Quanto tempo se passou desde aquele dia? João não lembrava, mas estava decidido que seria hoje. Haveria de beija-la, mesmo que fosse a última coisa que faria na vida. Tomou um banho demorado, depois aparou a barba bem conservada. Escolheu o melhor terno, camisa de seda, gravata combinando. Sapatos italianos. Perfume. Entrou no carro e dirigiu com calma. Ao chegar notou que todos já estavam lá, os amigos, os parentes, todos uma família. Cumprimentou os que cruzaram seu caminho, e foi entrando, buscando por ela. Viu-a. Pele claríssima. A boca bem desenhada sobressaindo no rosto sereno. O Werneck estava por perto, mas ele nem se importou, tinha que ser hoje. Foi-se aproximando, trocando breves palavras aqui e acolá, até postar-se bem ao seu lado. Olhou novamente a boca irresistível, e, num repente, firmou suas mãos nos ombros de Malú, e colou sua boca na dela. No início fez-se silêncio. Mas logo formou-se um alarido, o Werneck gritava "filho da puta, filho da puta", mãos agarraram-no pelos braços e puxavam-no para longe dela, mas ele resistia aos puxões e chupava os lábios que levavam-no à loucura. Até que alguém puxou pela gravata, e ao sentir-se sufocar, finalmente soltou seus ombros e sua boca. Levou uma saraivada de socos e pontapés, ficando caído junto à parede. Ainda ouvia a voz do Werneck, "me solta, eu mato, eu mato!", mas ele não ligava. Sentiu que sangrava pelo nariz, e que seu olho esquerdo estava fechado. Alguém comandou "vamos antecipar, vamos agora!", e pelo olho bom João Gusmão viu chegar a tampa do caixão. Tentou levantar-se, mas não conseguiu. Aos poucos a multidão foi-se retirando, e ele ficou sozinho na capela. Levantou-se com esforço. O cortejo se afastava. O caixão estava sobre um carrinho, que era empurrado pelos funcionários do cemitério. Werneck ia logo atrás, abraçado pelos camaradas. Ele tornou a sentar-se no chão. Fechou o olho bom, respirou fundo, e lembrou-se daquele grande beijo, um beijo sensacional, na boca seca, dura e gelada. |