A FRONTEIRA
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Bárbara Helena
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A fronteira está perto. Seu coração está apertado de angústia. Amarrota o passaporte gasto e tenta pensar em outra coisa no rosto de Mario, no gosto daquela boca. Você sabe que está jogando sua última cartada. Ao redor de você, apenas terra crestada, algumas plantas mirradas e sol. Você aperta os olhos, tenta avistar o posto, mas o horizonte brilhante faz suas pálpebras se fecharem e os olhos se encherem de lágrimas.
Você anda mais um pouco, a música gira na sua cabeça: Im chekin out of the heartbreak hotel. É verdade. Está, finalmente, abandonando este hotel dos corações partidos, a boate fedida da Mirtes, tudo que você sempre detestou, mas parecia uma cola que não conseguia romper.
Agora está livre. De uma forma doentia, sofrida, mas livre. Você tenta esquecer o corpo branco e gordo, os pés pequenos apertados nos sapatos dourados. E o sangue espesso manchando o tapete azul do salão.
Você quer lembrar apenas dos músicos tocando: Summertime... fish are jumping and the cotton, the cotton is high e do algodão crescendo ao seu redor enquanto a guitarra subia, lancinante e o sax do Mudinho escancarava a alma pela solidão das savanas. Você conseguiu fugir da prisão do medo.
Seus pés estão machucados, mas você nem liga. Está concentrada em atingir a fronteira, em passar para o outro lado, o das pessoas normais, o da libertação.
Mas antes precisa apagar a imagem da Mirtes, sua voz anasalada, os dedos gordos de unhas pintadas contando as notas, seu vestido arrebentando as costuras. E esquecer de Mário. Ela caiu sem um suspiro, você relembra. Não quer, mas relembra. Ela caiu feito uma árvore gorda, calada, os olhos arregalados. Um tiro no coração e o sangue se espalhando pelo vestido violeta, escurecendo toda a região do busto e se espraiando ao redor dela no tapete, escorrendo para longe, procurando a porta.
Como você. Depois de roubar o passaporte.
Você olha o retrato e seu coração novamente se aperta. O rosto está meio apagado, dá para ser confundido com o seu. Você tem certeza disto. Ou precisa ter. Não tem escolha. Ao longe, vê a silhueta do posto policial. Seu pulso dispara e a carótida lateja. Foi onde atingiu Mario. A faca certeira, o olhar assustado dele. Você nunca vai esquecer. Ao longe, Mudinho ensaiava Summertime... e o algodão cresceu abafando tudo.
Você saiu, as lágrimas impedindo a visão, a garganta contraída que mal dava para respirar. E correu, correu sem parar, atravessou a cidade adormecida, os casebres da periferia, os campos de milho e penetrou no deserto, sob as estrelas, morrendo de frio e de medo.
O posto está cada vez maior, dá para ver, no brilho excessivo do sol, apertando os olhos, alguns policiais andando por ali. São ainda pequenos pontos negros e você sabe muito bem o que significam.
Você atravessa o deserto, com os pés em chagas, a cabeça latejando, os olhos estilhaçando a paisagem, a respiração ofegante. Mas você vai conseguir. Algum dia você foi uma menina confiante, algum dia você acreditou em Cinderelas e que Mirtes era sua fada madrinha. Acreditou que ela poderia mudar sua vida.
E vai mudar. Você olha para o rosto no passaporte. Mirtes de Angelis Martel. É você agora. Obrigada Mirtes. Você pensa no corpo gordo e branco e você ri. Pela primeira vez em muitos anos, você ri.
Seu riso atravessa a fronteira bem antes dos seus pés. |