BOLETIM DE OCORRÊNCIA
Olga de Mello
 
 

Com os tornozelos machucados ela ainda conseguiria caminhar, mas sem enxergar, o olho fechado, um ferimento no supercílio sangrando muito, era impossível. Sempre imaginara a expressão "um ferimento no supercílio", que lera em colunas esportivas sobre lutas de boxe. Não imaginava que o corte no supercílio não dói, o susto ao receber o golpe, sim, é doloroso. O telefone estava próximo, conseguiu discar o número da mãe, que não entendia nada do que falava.

Chovia fino, por sorte ia haver pouca gente na rua. Acordou o menino, vestiu-lhe um casaco, jogou uma capa de chuva nos ombros e foi esperar o táxi que chamara na porta do prédio. Lembrou-se dos óculos escuros e que pareceria maluca, à noite, de óculos escuros. Ou então, pensariam que estava chapada. E estava mesmo. Chapada de espanto. Não era dor, era o absurdo da situação.

- Se eu fosse você, dele não ia querer nada, nem o filho - repetiu a mãe, enquanto aguardavam o médico para o exame de corpo de delito num banco sujo e gelado.

- Ele não merece o filho.

O menino fora deixado com a tia, sonolento, sem entender por que havia sido tirado da cama. Dormia como uma pedra, era uma tarefa hercúlea despertá-lo todos os dias para ir ao colégio. Não ouvira os berros do pai. Nem precisava escutar o discurso do medico que examinava a mãe numa sala gelada, sem lençol na maca.

- Madame, não se encabule, não. Tem homem de tudo quanto é jeito batendo em mulher. Detesto homem covarde. Ainda lhe digo, a senhora deu sorte. Não tem nenhuma fratura, só hematomas e cortes superficiais, das porradas nos olhos. Desculpe, madame, a gente usa esses termos aqui mesmo. Mas a senhora vai ver que esse seu marido, é seu marido, não é? Vai ver que ele vai pedir pra voltar. Homem que bate pouco gosta da mulher. Só está no desvario, entende? Não teve violência sexual, né? Não preciso fazer exame completo na senhora?

- Não, foi só isso mesmo.

- A senhora tome um banho morno em casa, pode tomar também um analgésico e um antidistônico, vou lhe receitar aqui. Só para relaxar essa musculatura. Em dois dias não sentirá mais dor.

- E os olhos?

- Isso, moça, fica roxo por uma semana ou mais. Infelizmente. A senhora, daqui a pouco, pode disfarçar com pintura, sabe? Vai dar queixa na delegacia?

- Vou.

- Então, vai de uma vez, antes de se arrumar toda. Antes até de falar com advogado. Pega bem, não parece caso pensado. Mas, fique certa, pode tomar nota: ele volta, ele vai se arrepender.

De volta à rua, a chuva aumentava. Queria um banho, mas era melhor seguir o conselho do médico meganha e rumar para a delegacia.

- Ainda bem que é tarde, o distrito deve estar vazio.

- Mamãe, não é distrito, é delegacia. Deixou de ser distrito há muitos anos.

- Distrito ou não, é lá que você vai parar e dizer que apanhou do monstro do seu marido. E aquele médico, hein?

- O que tem o médico?

- Mais parecia policial. Olha como o homem falava! Um filósofo, um filósofo...

A capacidade de rir voltava aos poucos, embora a cabeça doesse muito.

- Eu quero ir a um médico de verdade depois que isso tudo acabar. Fazer radiografia, fazer um eletro.

- Tá sentindo alguma coisa no coração? Ah, não me venha com bobagem, menina, sem sentimentalismos baratos. Tenha fibra nessa hora!

- Quero fazer um eletro de cabeça, Mamãe. Sei lá se afetou alguma coisa aqui por dentro.

- Afetou nada. O cretino bebe e vira a mão em você, mas você vai segurar a onda, filha. Eu estou do teu lado e, se pudesse, se tivesse ainda teu pai vivo, ah, aí eu queria ver ele machucar teus olhos. Por que esse desgraçado machucou teus olhos? Logo o que você tem de mais bonito...

A delegacia estava vazia, como previra dona Belmira. Dois rapazes registravam o roubo de um carro.

- Eu queria registrar uma agressão.

- Trouxe o "rezistro" do corpo delito?

- Já fiz, mas o médico disse que manda pra cá depois, quando vocês requisitarem. Só tenho o protocolo do registro.

- Já serve. Não devia ter ninguém pra bater o rezistro a essa hora. A senhora devia ter deixado pra fazer tudo amanhã de manhã. Sabe por quê? Porque eu já estou careca de fazer rezistro de agressão e depois a vítima vem retirar a queixa. É aquele velho ditado, em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher.

- O senhor vai fazer o registro?

- Vou, lógico que vou, mas a senhora é bem capaz de chegar aqui amanhã, pedindo pra retirar a queixa. Olha bem, foi o marido, não foi? Deixa pra lá, madame. Depois ele compra uma roupa bem bonita pra senhora, uma jóia, uma viagem.

Não dava nem para lançar um olhar fulminante na direção do rapaz que devia ser policial, mas parecia mais um atendente. Um dos olhos estava quase fechado. Na saleta, contou a briga como um autômato para outro homem, que se apresentou como detetive.

- Cheguei em casa às 11 da noite, meu marido reclamou do horário e me bateu. Depois, saiu, eu peguei meu filho e fui para a casa de minha mãe.

- Ele a ameaçou com alguma arma, porrete, algum objeto?

- Não.

- Ele falou alguma coisa?

- Falou.

- O quê?

- Não me lembro.

- É melhor a senhora se lembrar. Isso, se a senhora for persistir com a queixa.

- Ele disse que eu não prestava.

- Só isso?

- Que eu tinha amantes.

- E a senhora tem a ... algum amigo especial?

- Isso tem a ver com o registro?

- Bom, seria um motivo que ele iria alegar e ....

- Isso é para ser discutido com advogado, não é?

- O melhor é a senhora dizer tudo o que lembrar, o que for verdade, para entrar no processo e não haver contradição posterior, compreende, senhora?

- Compreendo, sim.

- E então?

- Eu fui jantar fora com um amigo.

- Seu namorado?

- Eu preciso explicar o relacionamento agora?

- Não, mas...

- Um amigo.

- Algo mais aconteceu?

- Aconteuceu. Eu cheguei em casa, ele reclamou e avançou em mim.

- Disse alguma coisa?

- Disse que eu ... disse, sim. Disse que queria me cegar. Que ninguém mais ia olhar pros meus olhos.

- Tá vendo? Isso é importante. A senhora falou algo muito importante, mesmo que vá retirar a queixa amanhã. A senhora vai guardar este depoimento, carimbado, protocolado, assinado e seu marido saberá que fez coisa errada, entendeu, dona Ângela? Maldade mesmo, seus olhos são bonitos, são azuis?

- Verdes.

- Ah, a cor dos ciumentos, não é? Não tem uma história, um ditado sobre os ciumentos de olhos verdes?

- O ciúme é um monstro de olhos verdes. Acho que é de Shakespeare.

- Eu gosto dele, daquela história de Romeu e Julieta, não foi ele que escreveu?

Ao deixar a delegacia, o dia amanhecia.

- Agora, vamos pra casa, você toma um banho, descansa, vai a um médico de manhã, pega uma licença, porque não dá para trabalhar com esses olhos assim, depois, vamos logo falar com o advogado.

A chuva recomeçou, as dores vieram, então, intensas. Os tornozelos, a barriga, os ombros. No táxi, hesitou antes de dizer o endereço da mãe.

- Ué, você achava que ia para sua casa? Melhor ficar comigo hoje, eu lhe arrumo uma roupa e ...

- Mamãe, eu não tenho mais casa.

E escorreu a dor, junto com a chuva.

 
 

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