OLHOS NEGROS
Glatson
 
 

"Triste os teus olhos, tristes" - você me diz; e adormeço assim: escutando sua voz sussurrada, na penumbra do quarto, quase negro.

Vejo você longe, cabisbaixo, andando por uma praça florida e fria. vou a seu encontro e imagino sua felicidade ao me ver; porém, entre meu ato e sua consolidação, um vulto branco se apodera de mim. parece que já o conheço, e ele me diz coisas tão bonitas que me entorpeço, perco a razão. saímos juntos de mãos dadas, atravessamos a rua; olho para trás, perco você de vista.

de repente, sinto que o chão me falta; um calafrio invade meu corpo, estremeço. o vulto se enlaça em mim, estamos acima do chão, e tenho medo. nossos corpos se unem, parecem um só. ele sussurra algo em meu ouvido. sinto um prazer inexplicável; uma leveza incrível dá lugar ao medo. ele mostra sua cara, mas eu não vejo seu rosto; não enxergo seu sorriso escarninho. estamos leves, agarrados um ao outro, entrelaçados no espaço.

Ele me aponta as árvores logo abaixo de meus pés; as ruas movimentadas; as pessoas que andam apressadas pelas calçadas; o triste cotidiano. estou seguro e sinto uma alegria irreconhecível. meus pés estão nus, e sinto uma leve brisa soprar por debaixo deles.

Um barulho seco, a poucas quadras, faz-se ouvir. olho e vejo luzes, um veículo em alta velocidade. um acidente! chego mais perto; alguém está estirado ao chão, agonizante. sangue e dor se misturam numa tal intimidade que parecem irmãos. o vulto se desfaz de meu corpo; volto à realidade; caio com os pés nus.

Olho novamente e vejo que é você, debatendo-se. as pessoas abrem passagem e me olham, inconformadas. você agoniza, chama por meu nome. me aproximo; seu olhar me interroga: - por quê, por quê me empurraste para a morte?

Sua dor é minha dor. seus olhos negros pedem respostas; me sufocam, me engolem, me fazem cair no abismo. tento me desvencilhar, mas tudo é negro, escuro...

teus olhos negros...

Acordo sobressaltado e coberto de suor; sinto uma leve dor por debaixo dos pés. a cabeça também dói. olho para o lado e vejo você, acordado. apesar da escuridão, teus olhos me observam: são negros, e confundem-se com a penumbra do quarto.

 
 

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