LUCA E ZUZU
Eduardo Prearo
 

"Já não é leve o perigo quando
parece leve"
Francis Bacon

"Quando os olhos não admiram o
coração não deseja"
Provérbio Latino

A amorosa Luca tudo sofre. Poço de bondade grande, não vive enclausurada em um convento do ponto leste. Aos sábados de mendiga disfarça-se, recalcitrante quanto aos detalhes da esfarrapada indumentária. Ela quer auxiliar os enfermos miseráveis abocanhados pela fome. Na escapulida mais recente achou Zuzu, indigente pagã que mora sob o Chá. Zuzu em renascimentos crê, na sua penúria como um efeito crê; ela faz magia de todo o tipo e também fogueiras vez ou outra, no frio, no friozinho, no frio de lascar. Ah, essa Zuzu! Bom, o encontro primeiro das duas foi estranho; o encontro segundo não; aí já eram amigas:

--- Oi, Zuzu, cheguei!

--- Por que não se senta? Você parece aquela bruxa, não me lembro o nome. Viu que levaram os outros para os albergues? Menos eu e você. Ah, eu me escondi.

--- Você está mais corada hoje. Trouxe-lhe mais bombons. Hum, nem me agradece, querida?

--- Grata estou pelas personalidades deste teatro ínfimo que é a vida. Agora saia daqui, sua bruxa. Sou caso de polícia.

--- Saia daqui...hum, você deve ter ouvido isso muitas vezes, não é? Não seja má. O mal é ruim.

--- Mal? Mal é mandar matar, ah, ah, ah...

--- O amor de Cristo nos uniu.

--- Fui Cleópatra em outra vida.

--- Inexistem outras vidas, só existe uma, esta, a que estamos vivendo. Sabe, sei que você gosta de cantar. Sei de um lugar onde há um coral de freiras e...

--- Não me venha com coral de freiras. Que nojo! A bituca de cigarro tem cocô. Me dá um cigarro?

--- Olha, tenho aqui três maços. Mas faz muito mal para a saúde, viu? Aprenda a acalmar os nervos de outra maneira; orando, por exemplo.

--- Ah é, se você tiver algum defeito que morra!

--- Só estou querendo ajudar. Não chore. Não chore. Seus olhos ficam verdíssimos quando você chora, percebi isso desde o primeiro encontro. Não queira o mal de ninguém, isso é horrível, traz sofrimento.

--- Não me peça nada, Luca. Sou o que sou. Só preciso de um empurrãozinho. A gente é obrigada a ficar em um país que não gosta. Aqui as pessoas nunca têm defeitos. Quando precisarem de mim para alguma coisa, o que será difícil, não vou ter. Sou mesmo uma imoral e...

--- Quieta! A lua está cheia e bonita. Esquenta um pouco de leite na espiriteira pra mim. Sabe, quando eu era jovem, saia correndo de tanto amor que sentia.

--- Acabou o álcool.

--- Deixa, então.

--- Luca...olha, não quero ser chata. Mas você não é mendiga, você é uma disfarçada. Ou então é uma dondoca cujo o amor foi exterminado por cheques voadores. Vão-me maltratar, eu sei, não trabalho!

--- Tem família?

--- Sempre vêm com a mesma pergunta. A minha pátria é o Universo a partir de agora.

--- Ah é, que bonito isso.

--- É.

 

fale com o autor