BUQUICA
|
Beto Muniz
|
Aos treze anos, quando a família se mudou para a capital, ela já tinha uma boca semelhante àquela da Angelina Jolie no cartaz do filme. Mas eu que a conhecia desde os três anos de idade não percebia que os lábios carnudos da Fernandinha era uma arma me mantendo refém de suas brincadeiras, e nem imaginava que aos dezoito ela venderia seus beijos. Mas foi o que aconteceu, Fernanda virou garota de programa. Acho que foi aos dezesseis, quando deixou de responder minhas cartas. Logo depois das dez da manhã apareceu um recorte de manchete lá na vila. Buquica estava descabelada, parecia assustada olhando diretamente para a objetiva que flagrou a maquiagem escorrendo junto com as lágrimas em preto e branco do jornal. Muita gente se espantou com as letras garrafais acima do rosto da Fernandinha: "Programa termina em morte na Asa Norte". Logo o recorte foi esquecido e substituído por exemplares intactos completando a história e gerando comentários nos botecos, maledicências nas cozinhas, piadas na escola, futricas no cabeleireiro. No decorrer do dia ouvi incontáveis "eu não disse?", "Ela nunca me enganou com aquela carinha de santinha", "Santa do pau-oco!" e outras frases proféticas das matronas mal amadas. Todo esse circo eu assisti em silêncio. Nunca quis sair da vila para morar na cidade grande, como a maioria dos meus amigos fez. Estava para completar vinte anos e tinha um casamento em vista - para acontecer antes dos vinte e dois, mas ao ver os lábios da Buquica em close no recorte de jornal eu descobri que estava ainda na vila esperando eles voltarem. Fernandinha escrevia nas cartas que retornaria e nós brincaríamos novamente de treinar beijo no corredor sem muro que dividia nossas casas. Eu acreditei e ela esqueceu de responder minhas cartas. Esqueci que os beijos e as promessas não eram de verdade. Verdade para mim era a recordação do quanto era bom ter os lábios gordos da Fernanda engolindo meu fôlego. Continuei escrevendo cartas. Ao cair da noite guardei o recorte de jornal e deixei escapar a vontade. Era meio de semana, meio desespero, meio incômodo e eu querendo abandonar o trabalho, a vila, as matronas e suas profecias. Queria ir para a capital tornar verdadeiros os beijos da infância. Por duas noites dormi olhando a foto no recorte e sonhava que a Buquica aceitava meu ombro, meus braços, mãos e também treinava beijos na minha boca como se tivéssemos novamente oito anos. Acordava sem fôlego. Sem sono. Num desassossego maior que os dias. Então acabou a semana e eu fui para a Asa Norte. Fernandinha, que emburrava fácil fazendo bico com os lábios gordos duma Angelina Jolie criança, e por isso recebeu o apelido de Buquica, já estava fora do tumulto quando nos reencontramos. "O velho teve um enfarto mesmo - informou o legista, e a contusão na cabeça aconteceu na queda do corpo fulminado", mas nenhum jornal publicou que Fernanda era inocente. Buquica abriu a porta meio sem ter o que dizer, como se tivesse esquecido do meu telefonema. Depois disfarçou o embaraço e abriu seu sorrizão de Angelina Jolie fora de cartaz: "Que milagre é esse? O que te fez deixar a vila e vir pra capital?". Encantado diante daqueles lábios que treinavam beijos na minha boca eu menti, "Teus olhos em preto e branco" e estendi o recorte já sem a manchete escandalosa. Pensando bem, eu deveria ter sido sincero. Ela ficou parada com a foto de jornal na mão, depois suspirou, olhou o verso tentando disfarçar o turbilhão, e antes que a maquiagem borrasse esmagou na minha bochecha aquela boca treinada em meus lábios até os treze anos. Foram cinco anos de graça! |