INTIMIDADE
Raymundo Silveira
 
 

Um amor, uma amizade, uma afeição qualquer, quando morre, nunca existiu. O que houve foi uma gratificação pessoal que se esgotou com o passar do tempo. Donde se conclui que os "amores verdadeiros" são essencialmente perecíveis. Por outro lado, afeições supostamente inexistentes, existem, de fato. Apenas se encontram "hibernando". Ou num período de latência. A antipatia nutrida por uma convivência indesejada é, muitas vezes, uma simpatia não revelada. A razão recusa admitir uma atração que a emoção supõe não querer. E o motivo é simples: a razão sempre foi superestimada. A repulsa que acreditamos sentir por alguém, se transforma subitamente na mais profunda admiração quando menos esperamos. Basta uma pequenina ação, uma frase, uma palavra, um sorriso, um quase nada de solidariedade. Obviamente, não se está falando de paixões, mas tão somente do binômio Simpatia / Antipatia.

Pouquíssimos atos ou omissões dependem da vontade. Embora não querendo ser, somo-nos. Conquanto não queiramos estar, estamos-nos. Remamos contra a corrente em busca de um desejo que não é. Então, o que é intimidade? Qual a diferença da não intimidade? A mesma que separa a fome da saciedade. Ou a do valor que damos a um remédio amargo conforme estejamos ou não sentindo dores. Gotas de solidariedade, num mar de angústias, convertem calmarias de indiferença na brisa mansa da atração. Ou transformam tempestades que intimidam num oceano de intimidades. A presunção do hoje pode ser a vergonha da modéstia do ontem. Ou o terror da humilhação do amanhã. Há quem respire com sofreguidão o ar do presente para compensar a asma do passado. Do mesmo modo, há os asfixiados do agora que sentem saudades do fôlego do futuro.

Na geometria da ilusão, tudo é retilíneo e uniforme. Mas a realidade é oblíqua e desconforme. Nada se passa como planejamos ou imaginamos. Do mesmo modo como uma antipatia vira, de repente, simpatia, uma ardente paixão se transmuda na mais vil traição. Para que isso aconteça, também, quase nada é necessário. Basta uma palavra ou um gesto. Às vezes, nem isso. Em certas circunstâncias, a traição precede a paixão ou é sua contemporânea. Portanto, antes da própria intimidade intimidar já vigora a falsidade. Nestes casos, ela pode ser fatal. É quando a crença é túmulo e a desconfiança, berço da segurança. Só se escapa dessa fatalidade quando se é muito forte. Ou o traidor muito fraco. Então, como geralmente é difícil viver sem alguma intimidade, é preciso sonhar com ela para ser esposa. Mas dormindo sempre com amantes, suas rivais: a reserva a dissimulação e a descrença. De preferência, com todas no mesmo leito. O cinismo é o mais fiel guardião da imunidade contra a deslealdade.

A competência é a terra nutriz da independência. Esta, por sua vez, é irmã xifópaga da liberdade. Quem convive com as duas, nada teme. E somente a morte é capaz de abatê-las. Quem tem competência basta-se a si próprio. Só será íntimo de quem quiser. Se o quiser. Quando quiser. Quem escreveu esse texto se considera apenas medianamente competente. Ainda assim, já mandou à berda-merda muitos pretendentes a donos da sua dignidade. Cujos sacos já devem estar sendo pisoteados por eles próprios. Pois já esticaram demais. Devido a tanta gente que vive a tracioná-los. Na intimidade.

 
 

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