CLARICE
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Ela morreu no início do inverno e, pelo menos em um momento, peguei-me a conjeturar se não seria uma obra do Destino querendo mostrar através de suas quase sempre complicadas metáforas a necessidade de entendê-lo. Clarice parecia sempre querer me contradizer ainda que desde o primeiro momento mostrasse pura alegria, espalhando felicidade em sua juventude mergulhando num primeiro amor. Definitivo, ela jurava. Eu queria acreditar e devolvia-lhe esse sentimento em gestos de muito carinho e palavras que, antes de conhecê-la, não imaginava existirem. Ela surgiu e abriu um livro de cânticos que eu lia vorazmente a cada manhã, vendo-a espreguiçar-se e derramando inocência ou quando, noite mansa, vinha aninhar-se junto a meu corpo buscando aquele toque que a percorria toda com a ponta dos dedos fazendo-a lânguida como gata no cio. Clarice vibrava em cada célula, mas eu não conseguia lutar contra meus pressentimentos. Os dias tornaram-se mais longos, cada um dele a se iniciar com a lentidão exata da ampulheta que mede o tempo, apenas mede e não deixa sentir como é dolorido vê-lo escapar num fiapo de areia de impossível retenção. Ela zombava de meus medos. Não era rebeldia; queria me excitar e ao mesmo tempo mostrar que me possuia. Tal como o tempo, no entanto, parecia-me perdê-la um pouco a cada dissabor, não poucos. Nossa paixão era invejada nas sombras, criticada ao sol, incompreendida dia e noite. Era o que a fazia mostrar-se frágil, procurando refúgio em mim sem entender porque tudo aquilo acontecia. Repetia-lhe meu amor, dava-lhe abrigo em meus braços e lenitivo para sua intranqüilidade. Na maciez dos lençóis tudo isso tomava um sentido de verdade e verdade seria se ela, por vezes, não acordasse sobressaltada por não entender aquele rancor gerado por preconceitos, perguntando-se porque as pessoas viram o rosto para uma felicidade que não a delas. Era possível que eu visse como premonição gestos ou acontecimentos que a muitos passariam ao léu do destino, como na vez em que, num passeio à praia, mãos dadas caminhávamos, pés descobertos e sentindo a natureza nos invadir. Clarice se abaixou e com o dedo desenhou um grande coração na areia. Também me abaixei e imitei seu gesto, desenhando um outro coração entrelaçado ao seu. Um gesto prosaico de repente desmanchado pela água que chegou até nós. Ela levantou-se mirando aquelas figuras disformes e foi recuando lentamente, olhos assustados até virar-se e correr em desespero. Alcancei-a já encostada numa árvore, em soluços, braços apoiados no tronco e o rosto escondido neles. Enlacei-a delicadamente por trás, seus cabelos roçando-me a face e beijei-lhe o ombro desnudo. Senti-a passando-me seu arrepio, pele sobre pele, mas sem saber se era prazer que isso lhe causava ou era o tremor de um pesadelo. Virei-a de encontro a mim e nossos lábios se encontraram, mas a indizível sensação de seu desassossego também me era repassada. Assim era ela, um animalzinho por vezes assustado e que, quando queria, insinuava rebeldia. Brigávamos, motivos inconseqüentes, e ela me arranhava para em seguida, manhosa, suplicar meu perdão. Na verdade, eram duas pessoas brincando de brigar e fingindo um perdão nunca necessário. Depois, o amor. Amávamo-nos com loucura e prometíamo-nos paixão eterna, dessas que só amantes procurando o legítimo pensam ter. A areia do tempo continuava escoando e, ainda que eu a quisesse minha cada vez mais, Clarice escapava-me aos poucos por entre os dedos e eu cerrava os punhos como querendo retê-la. Não conseguia explicar esse sentimento, dolorido e cheio de presságios. Sem palavras, ela sorria quando eu a fitava, sem palavras. Entendíamo-nos também no silêncio. Aproximava-se de mim, abraçava-me, mordia-me a ponta da orelha. Excitava-me. Mas ela não estava ali. Sentia seu corpo mas não sua alma. Num fim de tarde qualquer, eu estava na cama com um livro nas mãos quando Clarice entrou. Parando na porta, fitou-me com olhos de adeus que me agrediram, machucaram, paralisando-me totalmente. Caminhou até o grande espelho e ficou a olhar-se longamente. Aos poucos, foi despindo suas roupas, peça a peça, como querendo descobrir-se. Nua frente ao cristal, entregue ao tempo, permaneceu mirando-se na tentativa de entender seu corpo, por fora e por dentro. A revelação da doença incurável veio numa voz suave, sem demonstrar dor ou resignação. Outra vez surpreendeu-me com sua serenidade, envolta numa aura que a tornava superior, fazendo calar em minha garganta um grito de revolta prestes a explodir. Ela continuou imóvel por um tempo impossível de ser medido, olhando-se e compreendendo cada vez mais. Em minha imobilidade e de uma maneira fascinada, jamais mórbida, fiquei a contemplar seus longos cabelos loiros descendo até a cintura e, pela primeira vez, entendi o vazio que me circundava, como se estivesse no centro de uma galáxia compreensivelmente desprovida de estrelas. Clarice voltou-se para mim, veio num caminhar etéreo até a cama e deitou-se a meu lado. Imóvel, nenhuma palavra mais, olhar perdido no espaço acima, bem acima de nós. Também sem nada dizer, em minha nudez de corpo e alma permaneci imóvel a seu lado, olhando o mesmo ponto no infinito. Nada além do ruído da respiração; só um ligeiro roçar das coxas ou de um dedo encontrando casualmente outro. Permanecemos por um tempo indefinido nesse êxtase, mais que isso, um ritual, e foi o mais completo ato de amor que pudemos fazer em toda nossa existência. Mentes se fundiram, pensamentos foram trocados, nossas essências tornando-se una. Lado a lado, amamo-nos louca e definitivamente naquele entardecer e a suavidade da noite chegando selou isso para sempre. Clarice morreu no início do inverno e, pelo menos em um momento, peguei-me a conjeturar se não seria uma obra do Destino querendo mostrar através de suas quase sempre complicadas metáforas a necessidade de entendê-lo. O que haveria a explicar ou entender? Nada que não tivéssemos percebido. Sabíamos que nosso amor machucava os outros, incapazes que eram de tê-lo igual. As agressões, veladas ou declaradas, não conseguiram nos separar. Não houve pequenos momentos entre nós; eles só existem para quem é naturalmente pequeno. Sempre mantivemos nossas capacidades de absorver golpes e transformá-los em paixão. Se algum dia perguntarem ter existido algum segredo para tal determinação, a resposta mais simples seria a de que dificilmente alguém iria entendê-lo. Na verdade, a quem mais interessaria isso senão a nós duas? |