BODY AND SOUL
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Bárbara Helena
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oh
baby,
Saímos do teatro, os pés doendo, barro grudando nos sapatos. Tinha um bar na estrada, pertinho, dava para poupar o band-aid na sola ferida. Marina cambaleava, navegando em martinis secos e molhados. Seu cabelo brilhante iluminava o encardido do lugar. Olhos azuis esgazeados, ela sorria para um mundo melhor, equilibrada em saltos sete e meio. Mimi pediu uma cerveja e bolinhos de bacalhau, com sua voz de pescadora de homens. O rapaz do balcão olhou para ela com vontade. Não era pro seu bico. Billie foi na mesma, com ovinhos de codorna. Eu no refrigerante apenas. Ninguém disse nada. Cada um por si e Deus contra todos. Cigarette Blues. Estava enjoada, pés e alma pesados. O ovo colorido me encarava de sua solidão azul na vitrine suja. Era eu. Aprisionada ali, incongruente e turquesa, num mundo de moscas e bolos velhos. Billie comia fazendo barulho, o dente de ouro brilhava no ritmo do mastigar. Marina entornou outro Martini e cambaleou. Mimi segurou seu braço com força de camponesa e ela se aprumou, de novo diva. Alguns fregueses nas mesas de madeira reconheceram o grupo, sorriram, nos ofereceram bebida. Sentamos. O tampo molhado me aumentou a náusea. Body and Soul. A cadeira era dura e bamba, o mundo girou mais rápido, tentei ignorar. Um homem segurou meu braço, magro e banguela, ria babando. Afastei o braço, séria. Ele ignorou e aproximou o bafo fétido do meu rosto: gostosa! Me deu uma vontade incontrolável de rir. Até o enjôo melhorou. Billie percebeu e gritou do outro lado da mesa: tudo bem aí? O homem grunhiu: tudo bem, amigo, tudo bem. Mas se afastou de mim. Marina desmaiou na tábua úmida. Era nossa carruagem de abóbora, hora de virar sapo. Billie se levantou, pegou a guitarra, nós ajudamos Marina a conviver com a realidade mais alguns minutos e saímos pela estrada barrenta. O hotel era longe e havia uma lua cheia - amarela, enorme, opressiva. Mimi resolveu cantar e eu rezei para que Billie não acompanhasse. Meu coração estava pesado demais. Marina ficou menos zumbi e sorriu. O sorriso cansado dela foi mais pesado de carregar do que o céu, os calos e a cantoria de Mimi. Chegamos inteiros na portaria silenciosa. Pegamos as chaves do porteiro entediado e subimos carregando o fardo semi-morto de nossa estrela maior. Billie colocou Marina na cama, como mãe amorosa. Tirou seus sapatos, arrumou o cabelo louro despenteado nos travesseiros, beijou de leve os lábios entreabertos e cobriu o corpo ainda vestido de prateado. Eu olhava tudo faminta e triste. Por mim, por ela, por Billie. Pela vida atravessada. Mimi perguntou da porta. - Querem um café? Eu não queria, não descia nada em mim, só giletes. Billie também recusou. Mimi cantarolou pelo corredor. Grande Mimi. A vida talvez seja simples. Saímos de mãos dadas. Na porta do meu quarto, Billie parou, me imprensou contra a parede. Eu desmaiei de dor, virei o rosto. Ele me puxou e beijou minha boca com seu hálito de cerveja e fumete. Seu hálito de paraíso. Tentei fugir, resistir, mas era tarde. Sempre foi tarde com Billie, meu Edvaldo de Cachambi. Dente de ouro, miséria, perdido de tudo. A única coisa preciosa que eu já tive nesta vida maldita. Billie, meu ovo de botequim. Turquesa. |