A CHAVE
Ana Terra
 

Quisemos ser promíscuos. Quisemos nos esquecer. Mas um aroma único não deixou.

Quisemos que as horas fossem iguais a outras que já vivemos. Quisemos apenas acrescentar e nada sentir.

Quisemos ser matemáticos, estratégicos e concretos.

Quisemos deixar tudo para trás, mas cometemos um deslize: esquecemos o chaveiro vermelho na porta do quarto.

Na hora pensamos: o que nos interessa esta chave? Nada. A casa não é nossa!

Pagamos a conta com a ilusão de não ter dívidas com um orgasmo que não tivemos.

Quisemos deixar a ilusão em qualquer lugar, como se desfaz de um pacote de fritas depois de usado.

Mas não conseguimos.

Tentamos. Sei que tentamos.

Deixei você no meio da chuva. Minha boca pedia por um café, mas não havia mais tempo.

Olhei o banco de trás e estranhei ao ver ali uma bagagem. Saí de casa sem levar nada. Apenas meu sexo sedento.

Mas um velho baú estava ali. Feito com madeira de lei. Forte. Quase eterno. Tentei me desfazer. Talvez jogá-lo num riacho qualquer. Mas não consegui. Respeitei e admirei o conteúdo. Era especialíssimo.

Uma rodovia me esperava Enquanto dirigia, pensava: por que não ser volúvel? Por que me preocupar com baús desconhecidos? Por que me preocupar com o orgasmo que não tive?

Mas... ali estava eu na tarde chuvosa. Preocupada ou apreensiva, não sei.

Eu, uma estrada, um baú e aromas.

A calma me envolveu. Não mais me preocupei se a estrada estava congestionada ou não. Se a água do banho estava fria ou quente. Presente em mim só o seu cheiro.

O desejo não saciado transformou-se num orgasmo solitário. Conseguido através de pensamento e lembranças recentes. Sua voz contida ainda dizia palavras obscenas no meu ouvido.

Não mais vi a chuva. Não me importei com a água no pára- brisa impedindo-me a visão. Não vi um caminhão lento da minha frente. Meus sentidos concentraram-se no olfato.

O aroma único estava impregnado na minha pele.Como um alimento. Meus dedos cheiravam a sexo. Devorei-os com a língua.

Perdi a estrada. Perdi o caminho. Perdi o senso e me achei na alegria, na cumplicidade, no contraste de cor, num ângulo safado, num estelionato inteligente, numa toalha enxugando seu rosto com delicadeza, na sua boca indecente que me fez decente e inconsciente.

Olhei com carinho o velho baú que pegou uma carona. Nem preciso abri-lo. Já conheço o conteúdo: ternura, desejo e inconsciência.

Deliciosa falta de lucidez que nos fez flutuar! Que fez nossos corpos dar uma volta no espaço, deixando os poros arrepiados como ventosas de um polvo faminto. No abraço de almas.

Na lembrança, fotos mentais só nossas, num ângulo perfeito. Seus lábios nos meus mamilos. Suas coxas sobre as minhas jorrando o seu desejo nosso.

O chaveiro vermelho. O quarto impessoal.

Agora entendo porque não fechamos a porta. Não quisemos emoções presas. Preferimos o orgasmo em liberdade. Ou talvez um abrigo para um desejo crescente. O segredo das surpresas reveladas através da sua boca indecente na minha boca surpresa.

Não deixamos que as palavras nos atropelassem...

E o orgasmo? Acho que ele se transformou em dívida mútua. O chaveiro vermelho ficou lá, nos esperando.

O destino saberá a hora de saldarmos a dívida.

 
 

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