CLARIDADE
Olga de Mello
 
 

Não é que eu tenha medo do escuro, mas fica tudo um breu e se a gente tropeça quando levanta para ir ao banheiro durante a noite? Os piores acidentes são dentro de casa, lembra da sua avó, que caiu da cadeira, quer dizer, a cadeira quebrou com o peso dela e acabou que ela quebrou o cóccix e o fêmur. O Doutor Radamés, um santo, muito bom médico, muito boa pessoa, acudiu rapidinho e, se não fosse por ele, aqueles ortopedistas do Miguel Couto engessavam a perna dela de qualquer maneira. Ele botou o fêmur da sua avó no lugar, ela uivou e desmaiou. Depois é que chegou a ambulância e o Doutor Radamés acompanhou toda a cirurgia do cóccix da sua avó. Ficou direitinho. O fêmur é que não grudou direito, mas isso porque o seu pai insistiu em levar pra hospital público. Lógico, não era a mãe dele, né? Era a minha mãe, ele queria mais era que ela morresse logo. Lembra quando ela voltou pra casa, meio abobada? O Doutor Radamés disse que acontece com quem faz operação na terceira idade, queima muitos neurônios por causa da anestesia.

Então, minha filha, eu não quero ficar sem neurônios, dando trabalho para você igual sua avó e depois, seu pai também, porque a Justiça Divina atrasa, mas não falha. Ele também caiu em casa, escorregou no chão da cozinha que ele mesmo molhou. Foi ele, sim, que tinha mania de beber água antes de dormir e deixar tudo escuro para economizar na conta de luz. Encheu a garrafa e deixou cair um pouco de água no chão, porque já andava tremendo muito, com Mal de Parkinson. Ele dizia que enxergava igual a gato. Gato também fica cego. O tombo que ele levou foi horroroso, daqui só ouvi o estrondo. Quando cheguei na cozinha, ele estava todo esticado, não queria que eu o ajudasse a se levantar, lembra? Teve que vir o Doutor Radamés outra vez, ele é um santo, chegou a chamar a ambulância, mas só por besteira do seu pai, sempre apavorado com bobagem. Tinha quebrado um braço e uma vértebra, mas não aleijou, não. Foi é me dar mais trabalho que nunca! Isso tudo por quê? Porque não queria acender luz, tinha que ficar tudo no escuro.

Quando éramos moços, ele já tinha essa mania de escurinho. Tudo era pretexto para apagar as lâmpadas, acender velas e ficar à meia-luz. Cantava um bolero que falava na tal da meia-luz, ficava me abraçando e querendo dançar, mas eu sabia que a vontade dele era outra. Seu pai foi muito assanhado, minha filha. Depois de velho, não, mas quando moço! Olha que eu vivia apavorada, com medo de pegar mais filho ainda, até que veio a pílula e depois eu tive o mioma, tirei tudo, graças a Deus. Seu pai também foi-se aquietando, ainda bem que não existia essa desgraça do Viagra, que deixa os velhos no maior fogaréu. Você soube que o Antoninho, da Cleuza, arrumou amante moça e deixou a casa? Trinta e cinco anos de casamento, como é que pode tanta irresponsabilidade, meu Deus? E você fique bem alerta, minha filha, seu marido é moço, é bonito, tem muita mulher vigarista dando sopa por aí.

Agora, faz este favorzinho pra sua mãe, filhinha. Eu sempre deixava uma luzinha pequenina na sua cabeceira, agarrada na tomada, lembra? Era rosada, quase salmão. Promete que compra uma dessas lampadazinhas pra botar no meu quarto, promete? Tem umas lindas, com forma de anjinho. Enquanto não tem a lâmpada, vou deixar o abajur da cabeceira aceso, tá bom? E a luz do corredor também. Deus me livre cair de noite e dar trabalho pra você, que já é tão sacrificada, minha filha, com as crianças, com tanto trabalho, com marido exigente, porque ele é ótimo, mas é exigente, não é, minha querida? O Doutor Radamés mora aqui do lado, mas eu tenho medo. Nem quero incomodar o Doutor Radamés com meus achaques de velha. Ele também está ficando velho. Era tão bonito quando moço, minha filha. Eu até gostava dele, mas sua avó não queria, de jeito nenhum, porque sabia que a mãe dele era mulata. O seu pai, ela não percebeu que era meio amulatado também, sabe por quê? Porque ele só aparecia em casa no fim da tarde, na hora do lusco-fusco, quando sua avó enxergava muito pouco. Depois, vinha aquela história dele de ficar à meia-luz, dizendo que sentia calor com as lâmpadas acesas. Tudo conversa porque sabia que minha mãe era um pouco racista. Acho que ela nunca descobriu que ele era meio preto, vocês saíram bem alvos. Imagina, ela saber que tinha netos negros? Morria antes de quebrar o fêmur, coitada!

E eu tive que entrar nessas mentirinhas com o seu pai, que eu acho, sabe, minha filha, que acabou se acostumando com a escuridão. No princípio foi para esconder a cor da sua avó, mas depois ele resolveu esconder-se dele mesmo. Como se eu ligasse pra isso. Eu já tinha gostado antes do Doutor Radamés, coitado, que nunca se casou. Agora, é tarde demais.

Não apaga tudo, não, tá bom, querida? Você é tão boa, minha querida. Vem dar um beijo na Mamãe, vem. Apaga a luz de cima, porque eu também detesto claridade excessiva. Mas deixa a luz do corredor ligada.

 
 

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