PENUMBRAÇÃO
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De repente, constatou que já atravessara muitos dezembros sozinha e cansara de viver a gostos... Meneou a cabeça e disse não:
- Não vou mais assistir a este mesmo filme!
E, para delírio próprio, completou:
- Não gosto dessas roliudices nem de cenas dispensáveis de sexo e horror gratuitos. Gosto é de aventura e de romances... Desses articulados, inteligentes, que acrescentam, que induzem à celebração da vida, sabe? Gosto muito dos filmes noir, preto no branco, inacabados mas realistas, com poesia sutil e rara, saca? Sim, porque filme sem poesia, nada feito, não é mesmo? E discorria a comentar a técnica, a fotografia, os diretores, os estilos acadêmicos, os undergrounds e a art noveau, para o espanto generalizado do outro.
Este, entre baforadas estratosféricas e pontos de interrogação que pululavam de suas têmporas, bem à Hollywood, ensaiou alguns pigarros tentando se recompor. Coçou a barba, ajeitou-se à direção, mas não disfarçava o ar estupefato. Pois não é que ela agora tinha opinião? E escolada! Win Wenders? Stanley Kubrick? Mira Nair? Mas o que é isso? Desde quando ela ouviu falar em Abbas Kiarostami? Essa é boa. Que estória é essa de curso de fade-in? Desde quando ela pensava, meu Deus? Há quanto tempo escondia isso dele? Era uma rebelde sem causa! Onde já se viu? Fora enganado! Devia estar de olhos bem fechados. Aquilo era muito para a alma de um homem.
A vida deles antes era tão boa. Tinham um tratado antigo, perfeito e simples. Ela, faria tudo o que ele lhe pedisse e no tempo dele. Caso tudo desse certo, quando ele tivesse um tempinho (sem sacrificar o futebol e a cervejinha) podia até lhe dar um pouco de atenção como recompensa! Cinemas, desde que ele gostasse. Jantar fora, desde que ele escolhesse o local. Em contrapartida, ele sempre lhe apoiaria em tudo que solicitasse, desde que concordasse com o assunto, claro! E era um trato simples assim.
Por quê ela agora o assustava com esse discurso novo? Ele, um editor-chefe de jornal, pai de família, cheio de compromissos importantes, pautas a cumprir, teria de se preocupar com as coisas dela? Era o caos! Mas devia ser só uma crise: mulher é tudo que há de complicado! Quem sabe se lhe pedisse para revisar uns textos lá do jornal ela se sentiria prestigiada e até inteligente? Podia dar certo. Era o plano A. De plano B, deixaria ela falar e falar e fingiria apoiá-la. Plano C, não tinha. Ainda. Haveria de dissuadi-la da idéia de abandonar tanque e fogão, por amor de suas próprias idéias. Pois sim. Ele não era mais importante que isso? Ora, vejam só!
Olhou para ela, como se mirasse um filhote de passarinho: frágil, pequenina e indefesa. Mas queria voar, a danada! Como é que não havia notado antes que ela era bem articulada e até falava bem? Parecia até eloqüência de quem é culta! E agora? Esse discurso tinha de ser modificado já, pois senão teria de começar a tratá-la diferente, como uma igual, e isso além de incomodá-lo, daria um trabalho...Começava a se desesperar. Ausências pressentidas: a quem recorreria quando estivesse cansado da vida? Ela estaria ali para lhe dar a roupa do dia? Quem lhe prepararia a janta, meu Deus! Ele precisava daquela criaturinha mesmo frágil, pois parece que a vida não funcionava bem sem ela nem com fade-ins e fade-outs!
Lembrava uma atriz da qual gostavam juntos quando jovens. Comoveu-se ao rememorar uma das muitas discussões sem solução, onde ela lhe escrevera em desabafo, pedindo-lhe ajuda. Ele, sem tempo entre uma pauta e outra, não podia entender e escutar: inteligentemente, minimizou a estória para uma crise natural e lhe tascou uns conselhecos de botequim. Afinal, essa estória de tomar consciência do outro e respeitá-lo é muito complicada! Mas agora, na iminência de ficar sozinho nesse mundinho pra-lá-de-perfeito, entendeu que as infantilidades e carências dela eram um aviso prévio. Relutou.
- Bom, se você não vai mais ao cinema comigo, para onde pensa que está indo sozinha? Vai me dizer que vai me deixar aqui parado com duas entradas pro MEU filme? É isso? Ultimou-se.
Ela, tranqüila como quem não tem nada a perder, arriscou um olhar de pura compaixão por ele. Depois, espiou sobre o escuro mostrador do relógio antigo e rendeu-se à opinião do Prefeito de Greenwich: os ponteiros lhe garantiam muito tempo ainda mas era hora de tomar seu rumo! Viver era urgente e nunca fora uma questão de escolha: ela sobrevivera a muita coisa terrível por imposição de sua alma! Entre trevas e luz, prevalecera a penumbra. Sozinhez, ela já conhecia.
Então, viu-se dentro de uma outra sala elegante, onde delicadas luzes faziam o contraponto a uma harmoniosa bachiana. Pouco a pouco, deu-se conta de que nunca estivera sozinha e que seu próprio filme ainda estava por começar. Escolhera um romance. Desses honestos, bem realistas, sem roliudices. De olhos bem abertos, espiou a protagonista entrar em cena completamente nua, sob um luar de prata, repleta de pura poesia. Quem, em sã consciência, desprezaria uma cena assim? Aplausos espontâneos permearam o clima da sala ao final da projeção. Fade-out.
À meia-luz, sob uma lua em forma de um dê maiúsculo, ela vestiu-se de poema e encantou-se pela vida, toda prosa... |