DIGESTÃO A MEIA-LUZ
Leo Agapejev de Andrade
 
 

Tem coisas que nunca vieram e que nunca virão. A paz de espírito, por exemplo. Sempre me faltou, e até hoje me falta. Busco-a nas entranhas do mundo, mas me parece que entranhas são entranhas onde quer que elas estejam: no meio do mato, no mundo urbano ou no ser humano. Por isso, quero que publiquem coisas sobre as quais eu não tenha a mínima idéia, para que eu possa, enfim, descobrir uma ponta do que não andam dizendo por aí por puro pudor de usar o palavrório inadequado – e necessário – à ocasião; esta, desnecessária desde sempre e até o mundo deixar de ser mundo. Ponto. Mas como isso não é feito, sinto-me obrigado a tomar uma atitude: encher o saco de vísceras duramente recolhidas e sair por aí, procurando por um lugar adequado para se fazer um churrasquinho e tomar umas.

Algum local ermo e a céu aberto na cidade, e de preferência à noite, no limite do alcance da iluminação artificial. O tipo de local e horário em que as chances de que alguém passe são mínimas. Assim eu posso comer em paz: mastigo bem as vísceras e isso me facilita a digestão. Geralmente não passo mal com o que engulo; sejam cachorros, gatos, pombas, lixo doméstico ou pessoas a origem das entranhas, o importante é mastigar bem antes de engolir.

Sempre o mesmo pensamento, invariavelmente canibal, sobre comida!

Mas não é tão simples assim.

Tem que preparar o espetinho com uma certa antecedência. Temperar o fígado após, no máximo, meia hora depois de extraído. Pelo menos isso! O estômago, é possível congelá-lo e fazer uma bela dobradinha com feijão branco, pimenta e molho de tomate. Uau.

Porém, no geral, ou as coisas estão muito pretas, dada a escassez de material de qualidade disponível para coleta, ou estão necrosadas e cheiram tão mal que afastam até os menos exigentes, e sendo assim, não há muito o que se fazer. Ou melhor: o jeito é mastigar o mínimo e engolir depressa para evitar sentir o gosto desagradável. Depois, evito abrir a boca. Não se abre a boca após engolir vísceras semi-decompostas. Enfim, deve-se evitar atos desagradáveis às pessoas com as quais se convive, como não arrotar nunca; pois sua digestão deve ser feita em silêncio. No mais insuportável silêncio indigesto.

Pessoas que arrotam na presença de outras são um tanto malvistas.

 
 

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