DESIDÉRIO
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Na pequena Itapira não tinha muito o que se fazer... os dias seguiam calmos e sempre no mesmo ritmo. O de uma lenta caminhada, segundo padre Desidério. Anos e anos passados ouvindo o problema dos outros, as confissões de velhas beatas e homens quase santos que - na pior das hipóteses - somavam pecados como o do furto de uma galinha do vizinho ou o desejo incontido de falar da vida alheia! Não era de se espantar que o velho padre limitava-se apenas á ouvir e recomendar uma ou duas ave-marias a mais como penitencia. Muitas vezes, a maior parte das vezes, cochilava durante a confissão e sobressaltado com as pequenas pancadas que algum confessor mais atento dava na cabine do confessionário, já determinava-lhe tantos padre-nossos somados á outros tantos creio em deus padre. Certa vez, interrogado por certa velha beata sobre o quanto realmente ouvia de uma confissão, afirmou convicto: - Mais sabe Deus, dona Maria... mais sabe Ele sobre todos os pecados do homem do que esse humilde servo! Tudo muda, tudo tem que mudar. É a lei do próprio universo que garante sua renovação... sua transformação contínua rumo ao equilíbrio relativo das delicadas leis que regem nossa realidade. E, assim, bateu na porta da casa do velho padre já tarde da noite um forasteiro implorando-lhe que ouvisse sua triste história. Entre um e outro não e após muitas tentativas e duas doses de um bom conhaque resolveu atendê-lo. Jogou a batina por cima da cueca e dirigiu-se a igreja. Portas abertas, velas acesas, orações feitas e cada qual tomou sua posição. De um lado o velho padre sonolento, doutro o estranho homem de olhos profundos e negros como a noite. Enfiado em seu terno branco, ruidosamente passado. - Perdoe-me padre, pois eu pequei - começou o estranho, em sua voz o tom de emoção e mistério aguçou a curiosidade do velho padre - foi há muito tempo atrás... - Muito tempo é? - inquietou-se Desidéio, já procurando um como acomodar-se melhor no diminuto banco- Desculpe-me filho, continue! - Certa vez, confiaram-me um bem muito importante. Talvez o bem mais importante para uma raça inteira! E eu em meio a meu egoísmo, ciúme e prepotência achei-me superior ao próprio que foi-me confiado!- sentencio o estranho. - Entendo, retorquiu o padre, mas se foi há muito tempo suponho que seja lá o que for tenha se resolvido sozinho! - Como assim?- questionou o homem. - Filho, o Senhor tem sua forma de resolver as coisas...nesses anos todos como padre aqui, nesse fim de mundo, já ouvi de quase um tudo. E, acredite-me, o tempo cicatriza todas as feridas- concluio. - O senhor não entende! Falhei com Deus, desafiei-o ao não cumprir guardar o que foi-me confiado e, hoje, pessoas sofrem pelo meu despudor! Pelo meu crime- insistiu o estranho. - Falhou com Deus é? Bem e daí? Ninguém é perfeito sem ser Ele, não?- afirmou Desidério, já mais desperto. - Como assim?- questionou o confessante a seu confessor. - Ë muito simples, filho. Muito simples...pense bem, Deus é perfeito e nisso todos os homens e criaturas hão de concordar. Mesmo o asno sabe que é um asno pois feito asno em sua concepção! Se fosse vontade do Senhor que fosse um bicho mais esperto como uma raposa ou mais ágil como uma lebre ou, ainda, mais fiel como um cão, ele o teria feito assim!- concluiu o padre. - O que o senhor quer dizer com isso, exatamente? Que não conseguimos fugir do que somos ou que fomos criados para errar?- perguntou o estranho, os olhos vermelhos faiscando. - Bem, é quase isso...peguemos um caso clássico, o bom e velho diabo! Ora, não se surpreenda se assim falo desta ignóbil criatura, mas pense bem! Ele foi criado para ser perfeito! Mas o que é realmente perfeito a não ser Deus? De certa forma ao rebelar-se em sua confusão ante as ordens de seu Senhor ele cumpriu o motivo de sua criação: o de achar-se perfeito, o de ser criado para achar que era perfeito e o fato puro e simples de não sê-lo! - O senhor realmente pensa assim? Perguntou o homem, coçando a fronte enquanto distraia-se com a manchete do jornal que alguém esquecera na apertada cabine. - Sim filho, penso! Acho que o mais importante, o grande fundamento da confissão, não é a penitência... embora faça parte do fundamento do ato em si, o mais importante é não repetir o pecado!- disse convicto! - Bom, em meu caso não tenho como cometer mais o mesmo pecado. O que faço?- perguntou ao velho padre, enquanto abria o jornal e lia as manchetes sobre guerras, pestes e pragas espalhadas pelo globo. - Você tem que reconciliar-se com quem ofendeu e de alguma maneira reparar seu erro!- sentenciou Desidério. - Eis ai o que torna meu problema maior, pois não tenho como fazê-lo... respondeu-lhe tristemente o estranho. - Filho para tudo tem jeito, a não ser para a morte! Matas-te alguém?- perguntou interessado o padre, pois o último homicídio que alguém confessara-lhe fora de um leitão. - Não, não... muito embora acusem-me de muitas mortes, nunca matei ninguém. Tão pouco roubei ou violei qualquer outro mandamento!- respondeu-lhe. - Não violaste nenhum mandamento? Não cometeste nenhum pecado capital? Ora, ora... desta forma faz-me crer que és quase mais santo que Nosso Senhor!- disse o padre rindo. - Nenhuma destas coisas fiz, apenas rebelei-me contra as ordens que recebi e por isso fui condenado ao exílio e vivo apartado dos meus irmãos! Não posso retornar á meu antigo lar e não vejo como conciliar-me com meu Senhor! O que faço, padre? - perguntou-lhe o homem quase as lágrimas. - Filho, já que não violaste mandamento algum e não cometeste nenhum pecado capital resta-me dizer-lhe que ore mais, medite, procure um como reparar o mal que julgas ter feito e, principalmente, abstenha-se de cometê-lo uma segunda vez. O resto o Senhor mostrarar-lhe-á como proceder e manifestará em tua existência sua Santa Misericórdia!- concluiu Desidério, já muito aborrecido. - Então o senhor me absolve?- questionou-lhe o estranho, pasmo! - Sim, filho sim... Dez Pai-nosso, vinte Creio em Deus Padre e mais cinco Ave-Maria. E, lembre-se não peques mais!- concluiu o sacerdote, persignando-se e levantando-se para abrir a cortina do seu lado do confessionário. - Bom, resta-me voltar para casa- disse o estranho enquanto dava as costas para o padre, para o confessionário, para o altar. - Filho, interrogou-lhe Desidério, esqueci de perguntar-lhe teu nome! - Meu nome?- respondeu-lhe o estranho, sem virar para olhar nos olhos do velho padre- Tenho vários, mas podeis chamar-me de Lúcifer!- concluiu enquanto desaparecia numa nuvem de fumaça e fogo. Verdade ou mentira? Não sei...só sei que essa foi a história que padre Desidério contou durante vários anos no sanatório onde veio a falecer. E foi assim que me contaram... |