INVISIBILIDADE
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Rita Alves
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Tinha um sofá jogado na calçada, velho, sujo e nele havia restos de algo que poderia ser chamado de homem, se não fosse o seu estado tão parecido com o do próprio sofá. Farrapo. Era como um camaleão e só pude perceber que havia alguém ali porque ele se mexeu, ajeitando os trapos numa tentativa frustrada de espantar o frio. Meus olhos tinham cor de compaixão e minhas mãos tremiam de frio, apesar do casaco de lã. Fiquei um tempo parada observando as pessoas. Elas sorriam, caminhavam tranquilamente pela calçada. A mesma calçada que abrigava um homem sem esperança, se é que dentro daquele peito batia um coração, porque com o tempo ele podia ter virado uma coisa que gera repugnância ou que causa simplesmente indiferença. Eu tinha que continuar na direção exata da contramão dos meus sentimentos e de repente meu coração ficou pesado. As pessoas andavam pela rua alheias a tudo ao redor. Confesso que senti raiva. Estava sozinha com a minha dor e não havia ninguém para me estender os braços. Elas brindavam dentro dos restaurantes em nome da felicidade, angústia travestida. Um moleque passou correndo em direção ao ponto de ônibus, uma folha caiu, o motorista buzinou nervoso para o pedestre desatento, uma menina de tranças que tentava fazer cara de rebelde pedalava rapidamente a bicicleta cor-de-rosa. O vento bateu mais forte no meu rosto, a garoa fina e gelada começou a cair. Olhei para o mendigo pela última vez e pude sentir seus trapos molhados pela garoa impiedosa. Perguntei em voz baixa e cheia de rancor "onde está Deus"? |