ISABELA, FUGITIVA DO PASSADO
Cármen Rocha
 
 

Aquela confissão transtornou a minha vida...

A tempestade desabou, e as imagens voltaram fortes em seu espírito atormentado, daquele longínquo ano de 19.. , e, meu marido do outro lado do leito, dando-me as costas, confessava em desespero, em gemidos contundentes, como ela, Isabela, o amara, tanto e tão apaixonadamente como só se pode amar uma primeira vez... E o quanto tentou corresponder-lhe: Isabela, Isabela - soluçou ele, quase como um fantasma - sua silhueta me vinha através do espelho, e sua tristeza... envolvia-me. Como conseguiste tocar-me assim!- continuou em devaneio - o meu amor é tão forte e verdadeiro. "Eu irei para tão longe, amado" ele sussurrava por ela, em memórias - sentiu-a em sua imagem fantasmagórica, perdido em lembranças, e lágrimas desceram de seu rosto - "farei tudo para melhorar e voltar para ti, prometa não me esquecer, vamos prometa-me, pois ficarei tão só...e está tão frio..." - Sim, sim, eu te prometo... - meu marido engasga-se em sua dor, e só ouço sua respiração entrecortada.

Suas lembranças eram tão claras, tão verdadeiras, que eu própria vertia lágrimas. Virei-me mais um pouco. Sabia que a imagem que via, pois refletida, era a sombra do desespero daquele homem, totalmente tomado pelo passado tenebroso, que não percebia o meu desalento, nem minha dor, talvez nem minha presença...

Claro que prometo, irei esperá-la até sua cura ... - continuou dolorosamente em lembranças - nunca imaginei o que isso mudaria a minha vida... voltou-se um pouco para mim. e num desabafo, partilhando... Que desgraça, meu Senhor, onde andaste Tu? - voltou-se um pouco mais, - Ela escrevia-me a cada dois dias. Eu de nada sabia, pois minha tia escondia suas cartas. No entanto, sofria calado, e em total desespero, imaginando sua dor, perdoando o que achava a precariedade dos seus sentimentos, por não escrever-me. Passava fome e frio... para ofertar-lhe em paixão, pois compartilhava tudo o que sentia. Suas febres... suas dores... sua fragilidade... nunca desconfiei da verdade - continuou. Foi quando veio a funesta notícia. Ela expôs-se à morte, em desespero, por amor a mim. Imaginou que eu a abandonara. Pobrezinha! Nunca pôde saber como foi amada... - estendi-lhe a mão penalizada, mas não pude tocá-lo. Por sua confissão, minha própria vida se desmoronava naquele mesmo instante.

... naquele dia fatal - continuou sua confissão, em total alucinação, como se contasse para ele próprio- ela levantara-se do leito e arrastando-se ficara à janela do imenso corredor. Nada se fechava ali. Era norma dos sanatórios, nem portas ou janelas, para que o ar se conservasse o mais puro possível, e se renovasse à noite... - e - continuou com a voz enfraquecida - naquela ânsia de me vislumbrar na noite tenebrosa, pois assim foi em nossa despedida, ela se nutriu daquela friagem suicida, como se pudesse me absorver inteiro. A carta... - voltou-se para mim - chegou dias depois, e esta sim, minha tia fez questão de mostrar-me, como se quisera pôr fim à minha paixão e à minha vida.

Seus olhos opacos mostravam-se, doloridos, enquanto punha sua desdita a nu. E então eu soube. Aquela vida de sofrimento louco, não era por mim, sua esposa... mas por outra mulher cujo amor fôra tão forte, que o acompanhou vida afora, em nossa vida, chegando agora, através daquela imagem refletida a incomodar-me, a insultar-me, anos e anos após aqueles acontecimentos insólitos.

Meu marido, em sua louca lembrança, num desafogo irracional, vertia lágrimas, para meu espanto, e soluçava, de forma incontida e sem pudor, pela pessoa que tanto amara num passado-remoto, e cuja imagem o matava aos poucos e marcava seus dias tão tristes e vãos - sua mão desabou exausta.

Sentei-me desajeitada no leito e voltei-me mais para o espelho acusador, quase encobrindo a imagem de meu marido, para evitar seu rosto-reflexo-dor. Queria o meu, isso sim, a minha imagem, com ousadia, para enfrentar essa realidade que, de repente, me é revelada, dessa forma abrupta. Virei-me mais. Olhei-me de frente. Que silhueta triste. Quão pouco fora amada... ah... quão pequeno fora o meu papel na vida desse homem. Ele não partilhara da minha. Ele nunca me pertenceu. Essa mulher, paixão pungente, em forte imagem transformada e presente em reflexos vigorosos e doloridos, de lembranças tão poderosas, destruiu sua vida e até mesmo a minha. Ah, meu Deus! Será a vida uma realidade, ou apenas uma lembrança... Quem fui eu na vida desse homem? Vive-se ou imagina-se que vive? Senti uma vertigem. Eu sim, em sua vida, fôra apenas um reflexo.

 
 

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