NO LIMIAR DAS SOMBRAS
(parte sete)
Beto Muniz
 
 

O menino acordou sobressaltado. Sombras invadiam seu sono, assustando, espantando o fechar de olhos, o descanso necessário para fazê-lo esquecer o dia, a dor, o macaco. Voltou a dormir para novamente despertar com um ruído, depois com o vento uivando no saibro e trazendo para dentro de casa o cheiro de barro seco. Sonos breves. Despertou também com um estalo, ou com uma dor, o pé latejava, a casa estava em silêncio, menos pelo estalo que se repetiu. Era a porta. O pai voltando da casa do tio Chico. Juberto permaneceu sonado, flutuando entre a realidade e o pesadelo repetindo a volta para casa, o grito do macaco, o pai correndo e se distanciando, pé batendo novamente no toco e se abrindo, a corrida contra as sombras. Ouviu lá longe, em algum lugar da casa, a mãe puxando conversa com o pai, ouviu que o pai não queria falar sobre o macaco morto lá na beira da trilha, na borda da mata, mas a mãe tanto insistiu, tanto falou que ele tinha feito besteira e não queria contar porque sabia o tamanho da besteira que tinha feito, tanto ralhou chamando o pai de Jeronymo Cândido Marques - e ela só falava o nome inteiro do pai quando estava perdendo a paciência, que ele acabou concordando e falando que realmente tinha feito merda e por isso tinha ido chamar o Chico. Nem bem amanhecesse e eles iriam ver o tamanho da desgraça. A mulher se alarmou querendo saber o que tinha acontecido de verdade e o homem contou. Juberto, sem conseguir acordar completamente ouviu o pai falando com a mãe e contando do tiro, do grito, da fuga, do machucado no pé do menino.

- Acho que matei o Zé Florêncio.

- Ai meu Deus!

Entre dormir e acordar a palavra 'descansar' voltou a se confundir com a palavra 'Deus'. A avó tinha ensinado o menino a soletrar a palavra Deus: D e E formando a sílaba DE, U e S formando US. DE-US. DEUS. Juberto ficou indeciso, parado na soleira dos sonhos, metade dos sentidos querendo descansar e a outra metade acompanhando a conversa dos pais. Decerto que seu poder de compreensão dos fatos estava adormecida.

"Jeromo! Você me matou Jeromo!"

O berro reinou soberano na mata por alguns segundos e depois se extinguiu sem trono, sem herdeiros que lhe desse eco.

Na mente do menino ele continua se repetindo, sendo gritado numa explosão fantasmagórica sombria e confusa. O berro reverbera contra um azul escuro, crescente, que vai apagando os contornos dourados das nuvens e oprimindo as luzes alaranjadas que restam no lado oeste do céu. O menino ignora a dança das cores no firmamento e corre de encontro ao negrume frio, que exala da boca da noite escancarada, faminta. Ela devora o céu cor de abóbora estreitando mais e mais a faixa escarlate, única testemunha do ponto onde o sol se escondeu. As sombras da noite estão engolindo também a figura do pai. O contorno moribundo dança no cume da ladeira e se confunde com a imensidão sombria, a ponto de se tornar parte da bocarra escancarada.

- Pai!

O pai continua a corrida ao encontro da enorme sombra. Seu contorno dança novamente e lentamente vai se transformando em demônios que gargalham, zombam do pavor estampado no rosto e na voz do menino.

- Pai, me espera!

O vulto do pai dança pela última vez. Apenas um vestígio dos ombros e da cabeça no cume do morro. As sombras das árvores o engolem para regurgitar horrores no imaginário infantil. O menino se percebe só, abandonado na beira da mata, e esta percepção liberta histórias antigas narradas pela avó. Saci, mula sem cabeça, Boitatá, Curupira, fantasmas, zumbis e a pior das aparições; o Lobisomen.

- PAI!

O som da própria voz o assusta. Ele teme que seu grito acorde os seres da noite. O menino se cala e corre. Suas passadas são imensas para seu tamanho, as maiores já executadas por suas pernas pequenas. Sombras sobre a trilha. Um pio de seriema ecoa na borda da mata. O canto característico não é identificado pelo menino, que ouve gemidos fantasmagóricos e enxerga seres da noite despertando nas sombras a sua volta.

- Pai! - o som escapa de sua boca mais parecendo um lamento desesperançado.

O pé latejando de dor faz o menino olhar para o próprio dedão. O dedo acaba de ganhar um beiço vermelho. Com certeza a unha foi arrancada pela topada na raiz, ou ponta de toco. Mas não há tempo ou coragem para conferir o estrago e o garoto continua esticando seus passos infantis atrás do pai, ou das sombras que o engoliu. Dor e pavor, sangue e terra, demônios e sombras. Fugindo das gargalhadas espectrais o menino corre mancando de pé ferido, os olhos fixos no cume do morro onde as sombras envolveram seu pai.

- Jeromo! Você me matou Jeromo!

O menino chora. Vira o rosto para o lado onde o ouro borda contornos de nuvens, as sombras estão crescendo. Ele tenta compreender as imagens e sons que aterrorizam sua mente. O macaco gritou o nome do seu pai duas vezes. O pai também ouviu o berro do macaco e por isso corre, foge, se perde na escuridão. Mas o pai é um homem feito, está armado com a espingarda, têm pernas mais longas, passos mais largos, mais velocidade e certamente não está com o pé sangrando. Não deveria fugir deixando o filho apavorado para trás. Mas deixou! E se deixou haverá de ter motivos! Se o menino pensar que o pai é um covarde apanha. Apanha só por pensar! Então o menino esquece as lágrimas, a dor e pensa que o pai tem motivos para fugir apavorado. O pai é quem teve o nome gritado pelo macaco, faz sentido fugir, faz sentido deixar o filho para trás, faz sentido. O macaco falou o nome do pai duas vezes. Faz sentido! Se o nome do menino fosse gritado duas vezes pelo macaco na borda da mata, talvez o pé nem doesse tanto e ele pudesse estar lado a lado com o pai, correndo, atravessando o córrego lá em baixo, no sopé da ladeira. O menino corre pisando de lado, protegendo o lado machucado do pé. Está quase no topo do morro, depois tem a descida, a ladeira que termina no córrego que o pai já deve ter atravessado. A garganta está seca. O menino olha fixo para o recorte que o descampado da estradinha faz na mata, os dois lados povoados por monstros, almas penadas... Ele se assusta com a sombra que cresce de repente a sua frente: Saci! Os pensamentos fazem redemoinho. Não, não é o Saci, a sombra tem duas pernas, é o Curupira. Os cabelos de fogo, onde estão? Não parece o curupira. O menino para, instintivamente pronto para fugir. Mas não há para onde fugir. O espectro de sombras está a dois passos do pequeno que tenta lembrar alguma reza para espantar o ser maligno. Dentro da mente o redemoinho de pensamentos deixa escapar imagens do enterro do irmão, recordações das rezas para iluminar o caminho do anjinho. A reza bem poderia servir também para iluminar a estrada na beira da mata, dissipar essas sombras, afugentar esse fantasma da noite a sua frente. A sombra viva lhe cobre a visão da trilha, cresce, agiganta-se, e o menino desespera-se em lembrar a ladainha perdida no emaranhado de imagens do velório. A reza não vem. Na sua mente apenas imagens desfilando, cenas nítidas por detrás da retina: o corpo do irmão enfeitado de flores, as velas tremelicantes, a mesa ao lado repleta de copos cheirando a cachaça servida pelo avô. Os homens bebendo o corpo e as mulheres entoando rezas para iluminar o caminho do irmão. O menino não lembra a reza que ilumina caminhos. O medo faz seu coração saltar, vir parar na garganta, dá para sentir o gosto do coração. O menino sente o bafo do ser feito de sombras que estende as garras, ele desiste da reza e se vira para correr, ele não aprendeu as palavras da reza para iluminar caminhos, se não aprendeu é claro que não vai se lembrar. Se lembrar de algo que nunca soube? Ele troca os pensamentos da reza pela vontade de gritar quando o espectro o agarra. Ele grita, seu berro rasga a garganta e penetra na escuridão como facho de luz. O berro ilumina o espectro maligno formado pela mente. A sombra se transforma no pai. O pai voltou! Parece um morto-vivo gigante saído das sombras, mas é o pai. O homem agarra o menino, joga nos ombros e continua a correr. Faltava pouco para o menino alcançar o cume do subidão e começar a descida, a ladeira que termina no córrego. O pai corre, atravessa o leito d'água correndo e, sem parar, com a mão em concha leva um punhado de água até os lábios por duas vezes. O menino também queria um gole de água mas fica calado, com sede, observando numa inveja seca a mão do pai baixar no córrego e ir aos lábios. A concha feita pela palma e dedos vazando água. Os excessos escorrem pela barba rala, molha o queixo e desce pelo pescoço molhando a gola da camisa. O menino desvia os olhos do tecido molhado e passa a acompanhar os pés do pai. Não vê o calcanhar do pai, só um pretume com o formato duma botina e barulho de couro encharcado. A sombra da bota saindo das águas e pisando novamente a terra, pisando o capim, a areia e correndo. Acompanha as costas dos joelhos do pai se dobrando a cada passo e enxerga a mancha mais escura na calça do pai. Não é água, o córguinho malemá chegou aos joelhos do pai, a mancha é no meio da coxa. Cada vez que o pai dobra o joelho a mancha aparece na lateral da perna. É sangue! A calça manchada com o sangue que flui em abundancia do pé infantil. O homem ajeita o menino no ombro e o corpo pequeno escorrega. O peito do filho fica colado no coração do pai, dá para sentir as batidas, os saltos, o galope compassado. O menino abraça o pescoço do pai e seus braços envolvem também o cano duplo da cartucheira que atirou no macaco.

"Jeromo! Você me matou Jeromo!"

(termina na próxima atualização)

 
 

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