MADRUGADA
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Madrugada. Enquanto minha família dormia, acordei. Lá fora, o frio, com seu melancólico bramido, vaticinava novas esperanças e novas mortes. Despi-me da realidade e imerso em devaneios fui fustigado pela cosmogonia do desespero. Imagens disformes mostravam-me o horror constante no prelúdio da humanidade. Talvez disso, hoje eu entenda tantas virtudes. Eram homens prostrados ante a imparcialidade de uma quimera. Crianças mutiladas embevecidas em ódio, fruto de uma educação dogmática. Mulheres nuas, vituperando verrinas à lúxuria, sedentas pelo gosto acre do sexo. A contradição fazia-se lei e os homens matavam-se mutuamente. Cresci nessa seara. Os devaneios remetiam-me a uma realidade insólita, a uma infância largamente esquecida. Desde outrora eu tinha medo de escuro, e ninguém vinha me fazer um carinho. Nessa atmosfera lúgubre fui educado. Hoje, tenho medo dos homens. Ademais, temo o escuro. Eu era puro demais, a sociedade não o era. Sempre busquei tangenciar os caminhos da pureza. Longe dos homens, pus-me a purificar-me ainda mais. Entretanto, a lisura que eu buscava mantinha-se cada vez mais longe, e imergia, inexoravelmente, na mais profunda escuridão. O conhecimento do mundo foi pouco para amenizar aquele breu avassalador. Nada mitigava o meu medo da vida. Quando disseram-me preparado à vida, abri os olhos buscando o helianto das paixões, ato contínuo chorei, e chorei convulsivamente a acrimônia do sentimentos humanos. Daquela época restam-me os delíquios e delírios... O frio continuava com sua melancolia insana, e este tinha olhos de Paganini. Dentro do meu quarto, enquanto minha família dormia, envolto pela escuridão, deitei-me novamente buscando a claridade das noites passadas. Inconscientemente sabia onde ela se encontrava e desejava, porém resistia, abster-me do escuro eternamente... |