POR UM FIO
Luís Valise
 

Inclinou o corpo para trás, sentindo o vergar obediente das molas da poltrona de encosto alto, revestida de couro preto. Sua sala deixava transparecer seu próprio espírito, pacífico e ordeiro. A mesa de trabalho ostentava pequenas pilhas de documentos assentadas em ordem rigorosa, como um jogo de buraco num colégio de freiras. Do vigésimo-quinto andar tinha visão sociológica da cidade: poderosos arranha-céus no centro, bairros arborizados no entorno, e para lá, onde a vista já quase não alcançava, o cinza nivelador dos telhados de amianto dos barracos de blocos aparentes, em ruas de terra batida. Chamou a secretária pelo interfone:

- Irani! Logo a moça parou junto à porta, aguardando as instruções.

- Liga o ar-condicionado.

O interruptor estava ao alcance do seu braço, mas, que diabo!, era ele quem mandava ali. O aparelho ronronou como um gato cochilando, e um sopro refrescante deu início ao dia de trabalho.

A manhã ia ao meio, ele lembrou de ligar para seu advogado:

- Irani! Esperou um pouco, nada. - Irani! Outra vez sem resposta. Ela ia muito ao banheiro, precisava ser chamada à atenção. Buscou o número na agenda e fez ele mesmo a ligação. Foi atendido por uma voz feminina:

- Alô?

- O Dr. Jaime, por favor, é o Dr. Macedo.

- Sinto muito, aqui não tem nenhum Dr. Jaime.

- Como não? O Dr. Jaime, advogado. Aqui quem fala é Dr. Macedo.

- Aqui não tem nenhum Dr. Jaime, já disse. Deve ser engano.

- Engano, como? Aí não é 8738-3234?

- Não, senhor. Aqui é 8738-3233.

- Queira perdoar, minha senhora, deu engano mesmo.

- Tudo bem, Dr. Macedo. E eu sou senhorita.

- Desculpe. Até logo.

- Não tem de quê. Até logo.

Inclinou novamente o corpo para trás, e por instantes saboreou a voz que ecoava em seus ouvidos: - Eu sou senhorita. Uma voz macia e firme ao mesmo tempo. Um convite e um aviso. - Eu sou senhorita...

Depois de dois dias ele ainda lutava contra a curiosidade de ouvir novamente aquela voz. Em sua posição ele não deveria ligar, afinal, embora jovem, era Diretor daquela grande empresa, e o cargo impunha seriedade e circunspecção, por isso evitou o quanto pode, e só ligou quando não agüentava mais.

- Alô?

- Aqui é o Dr. Macedo...

- Pensei que o senhor não fosse ligar mais...

- E não devia. Você também pensou em mim?

- Pensei. Me sentia meio ridícula, meio criança, imagina...

- Não quero parecer um conquistador, eu não sou assim, mas gostei da sua voz.

- E eu da sua. O senhor parece uma pessoa séria...

- Você. Me trate por você. Meu nome é Paulo, mas todos me chamam de Macedo, pode escolher.

- Já acostumei com Macedo. Meu nome é Ângela. Ou Angel.

- Angel, eu gosto de Angel.

- Eu não posso demorar muito no telefone. Quer que eu te ligue depois?

- Pode deixar que eu ligo, Angel. Tchau, um beijo.

- Outro, Dr. Mac..., quer dizer, Macedo.

Depois de duas horas ele já estava louco pra ligar de novo, mas não queria parecer adolescente bobo, embora por dentro se sentisse um.

- Tudo bem, Dr. Macedo? Irani estava parada na frente da sua mesa.

- Claro, Irani, por quê a pergunta?

- É que já estou parada aqui há um tempão, e o senhor está com o olhar perdido no horizonte, como se sorrisse para o futuro...

- Eu, sorrindo para o futuro? Você deu pra ler poesia agora, Irani?

- Não, Dr. Macedo, é essa sua cara que me fez pensar assim... Desculpe.

- Tudo bem, Irani, pode deixar a papelada aí em cima, depois eu assino.

Sorrindo para o futuro, aonde já se viu? Essa gente tem cada uma... Parece letra dessas músicas de dupla sertaneja. Eu estou simplesmente pensando em Angel. Sinto que existe alguma coisa além da coincidência... A voz dela mexe comigo de um jeito diferente, sei lá, faz meu coração bater mais depressa, eu acabo sorrindo, mesmo. Bestalhão! Aonde ela estará, nesse mar de prédios? Talvez numa dessas janelas bem pertinho, olhando para a minha janela, e também sem me ver... Angel... Dois dias depois:

- Alô?

- Angel, Macedo, bom dia, como vai?

- Por quê você demorou tanto a ligar?

- Tenho medo de te incomodar, sei lá.

- Não incomoda nunca. Pensei muito em você. Daqui eu vejo os prédios da cidade, e fico imaginando em qual deles você estará...

- Eu estou aqui... Vê?

- Não... Onde?

- Feche os olhos... Vê?

- Vejo... Macedo... Você é solteiro?

- Claro que sou solteiro! Se não, não estaria assim com você... E você?

- Solteira também. Mas não sou tão jovem como você imagina.

- Como você sabe o que eu imagino?

- Os homens sempre imaginam uma jovem magra e bonita... Tipo a Giselle.

- Claro que não! Eu vivo no mundo real, Angel, não num mundo de sonhos. Não sou mais criança. Estou chegando nos trinta e quatro...

- E eu... eu... vinte e oito.

- Verdade?

- É... trinta. Trinta. Meio velha, não?

- Não. Quero te conhecer. Onde? Quando?

Irani notou que o Dr. Macedo estava bem-vestido. Um terno bege clarinho, camisa azul-claro, gravata azul-escuro com listinhas amarelas. Perfumado. Ele não era feio, mas também ela nunca vira ele assim. Um sorriso teimava em rejuvenescer o ar compenetrado do executivo, e seus olhares distraídos para o horizonte, suas árvores, seus telhados. O encontro marcado para o almoço. Ela o esperaria defronte a uma loja de calçados, e estaria de vestido verde-claro e salto alto. A hora chegava. Ele saiu do escritório em tempo de caminhar lentamente, evitando o suor que poderia manchar a camisa. Entrou na rua movimentada e foi caminhando na calçada oposta à da sapataria. Entrou numa farmácia, e lá de dentro ficou observando. Ela chegou. Cabelos castanhos, estatura mediana, ficou olhando os modelos de sapatos. Vestido verde-claro, salto alto. Ele atravessou a rua. Foi chegando. Ela tinha pernas bem torneadas. Quando estava bem perto, chamou:

- Angel?

A moça virou-se, um sorriso largo tomava conta do seu rosto, rosto que pareceu familiar ao Dr.Macedo. Deram-se as mãos. Ele franziu o cenho, esforçando-se para lembrar de onde a conhecia. Ela ficou encabulada, seu rosto ficou vermelho, o sorriso foi ficando sem-jeito... Até que resolveu acabar com o mistério:

- Este mundo é mesmo pequeno, não? Você me conhece da casa Tia Majô, em Araçatuba. Lembra?

Macedo lembrou na hora. Teresa Bicuda! Se virava na zona de Araçatuba, na casa da Majô. Tinha esse apelido porque o bico dos seus seios eram grandes e pontudos como dois torresmos. Estivera com ela uma vez, quando foi ao enterro de um tio materno, e depois, junto com uns primos meio malucos, acabaram a noite na zona.

- Quê que você tá fazendo aqui?

- Estou tentando mudar de vida. Sabe, pelo telefone eu achei que minha hora tinha chegado... Estava bom demais pra ser verdade.

- Eu também fiquei meio entusiasmado... Poxa, Teresa, quem diria?

- Teresa, não, Angel. Teresa não existe mais. Vamos almoçar?

- Almoçar? Acho que não... Tô meio sem fome... Vamos prum motel?

- Motel? Não... Não tô afins...

- Então, tchau.

- Tchau. Me liga.

Do vigésimo-quinto andar ele vê os prédios, as árvores, o cinza... É jovem, e já Diretor de uma grande empresa. A manhã está abafada, o interruptor do ar-condicionado está ao alcance, mas como ali quem manda é ele, ele berra:

- Irani!!

 
 

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