SE O MEU FUSQUINHA FALASSE
Raymundo Silveira
 
 

Quase todas as pessoas associam a tonalidade verde a sentimentos ou a coisas da natureza: esperança, florestas, jardins... Pois comigo é diferente. Embora ame as plantas, e ainda restem alguns fiapos de esperança, a associação livre que faço com essa cor é um prosaico fusquinha. Foi o meu primeiro automóvel, e tinha mais de cinco anos de ''vida'', quando comprei. Claro que era verde. Não verde claro. Claro que era verde escuro. E o nome do vendedor, Gerardo Verdinho. Nada a ver, de verdade, com a cor do sedan. Trata-se de um apelido desde quando ele era criança.

Foi financiado em 48 prestações. Mesmo assim, não sabia como ia pagar, pois ainda não tinha emprego. Perdi a conta dos carros que possuí. Houve uma época (a das vacas gordas; já abordada numa outra crônica), em que cheguei a estacionar dois automóveis de luxo, zero quilômetro, no meu ''hangar''. Hangar, sim, pois só não voavam porque faltavam as asas. E a ''frota'' era atualizada a cada ano. Nenhum deles me deu tanta emoção quanto a que tive na primeira vez em que entrei no velho fusca e saí rodando por aí. Simplesmente, não acreditava. Parecia um sonho.

Lembro todos os detalhes do ''caso'' (da alvorada ao ocaso) entre o meu volquisvaguen e eu. Deixem-me ver o que pode ser contado aqui... A primeira batida ninguém esquece. Só para fins de comparação. Hoje tenho um Chevrolet Meriva 2003, que tanto bate quanto apanha. Pra mim, não passa de um molho de ferro e de borracha. Quando há uma colisão, não me digno nem a ir olhar o estrago. Sequer falo uma palavra para o outro motorista. Entrego o cartão de visitas, pego um táxi, ou o veículo reserva, e me mando. Pois bem (ou pois mal?), fazia menos de um mês de ''namoro'' quando uma senhora me pediu uma carona. Tive de dar uma marcha a ré. O lugar era vasto e descampado. Somente um poste a ''povoá-lo''. Pois bem... Pois mal. A porrada foi tão grande que derrubou o poste, engavetou o motor e amassou o meu coração...

Havia três motivos para levar a namorada, à noite, para junto do mangueiral que ficava na frente da faculdade de medicina: o escuro, o ermo e a cor. Se o meu fusca fosse branco, os dois primeiros fariam pouca diferença. Mas como era do mesmo tom do arvoredo, a camuflagem era decisiva. Sei o que estão pensando: o que faziam dentro daquela lata de sardinhas? Tudo! Nunca subestimem o que é capaz de fazer um casal desesperado... Dizem que há alguns que sobem pelas paredes...

Nem só de prazer vivem os proprietários de veículos. Nem os dos novos, imagine os de calhambeques. Num incerto sábado de carnaval mandei lavar e polir o fusquinha. Não o larguei um segundo. Acompanhava cada movimento do lavador como se estivesse participando do nascimento de um filho. Saiu tão reluzente quanto a minha alma. À tarde, uma carreata. Que naquele tempo estava longe de ter este nome. Tratava-se de um corso. O fusca, eu e a namorada parecíamos a corte de Charles e Diana da Catedral de St. Paul para o Palácio de Buckingham, depois da cerimônia de casamento. Havia uma multidão de ''sem carros'' que assistia a tudo das calçadas. A maioria se consumindo de inveja. Pois bem... (pois mal). No auge do desfile o desgraçado estancou. E não houve ''choro, nem vela nem fita amarela'' gravada com o nome de quem quer que fosse, que o fizesse ''pegar''. ''Tira essa carroça do meio, seu viado...''. ''Vende e compra uma bateria''. Saímos e empurramos. Uma das maiores humilhações que já passei.

Há muito mais. Contudo, bastam essas pequenas lembranças para demonstrar como era a relação (quase de pessoa para pessoa) entre mim e o meu fusquinha verde. VERDE de Verdade. VERDE de Imaturidade. VERDE de mocidade. Saudade.

 
 

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