GOSTO AMARGO DE FEL
Kátia Rodrigues
 
 

Verde! Dizem que é a cor da raiva. Digo que não. Talvez do medo, ou do seu inverso, a esperança. O quarto escuro ainda dorme, por trás da persiana negra que esconde o mundo lá fora. O mundo, um mundo... Acostumo os olhos no breu de dentro, pisco lentamente enquanto acendo o pensamento, lento. Aos poucos começo a enxergar paredes, e suas manchas de sombras, quadros e vazios da noite que vai longe. Longe. Longe da noite de ontem que finalmente acabou. Procuro um cigarro na mesa ao lado da cama; encontro um maço vazio. O vazio, o nada. Levanto e me ponho a procurar na mochila sobre a cadeira, perto do pé da cama. Sinto o maço e me deito novamente, começo a abri-lo. Tiro um cigarro e cheiro o tabaco, antes de acende-lo com o isqueiro largado no canto escuro, na gaveta da mesa do lado, escondido, perdido, guardado. Uma tragada, os olhos se fecham; vagarosamente a fumaça surge em frente. Por trás das paredes, lá fora, a vida acontece, prossegue, em total indiferença. São todos uma multidão de solitários, perdidos em sonhos eternizados, com esperanças de não estarem nunca mais sós. Coitados.

Acordou com o gosto amargo na boca. Pensou em levantar e perdeu-se, olhar vagando no teto. Não sabia às horas, nem quanto tempo ainda tinha até o telefone chamar, ou a porta ser sacudida por alguém de fora. Ergueu-se lentamente, passos apertados, até a cozinha, que ali não passava de uma parede, com pia e um fogão pequeno. Ligou o gás. Pegou a garrafa e bebeu no gargalo, um gole longo, profundo. Lembrou-se do ontem, da indiferença, do medo. Não se arrependeu de nada, não tinha o que perder. Já nascera com o prejuízo que a vida lhe trouxe. Vida sem graça, desgraça de vida essa. Era o reverso das esperanças do mundo; dentro era o nada. Começou a acreditar que só existem espaços sombrios. Vivia seu próprio purgatório, e diferente do que sempre imaginara, não se importava mais com nenhum julgamento. Sua consciência (seria este o nome?) estava desperta; finalmente conseguia olhar-se. Tinha medo do que via.

Apanhei o caderno de anotações. Nove de novembro foi o último dia. Uma terça feira guardada em mil novecentos e noventa e nove. Era um tempo em que andava em Deus, e mesmo agora que não acreditava mais Nele, lembrava desse dia; a maioria contentava-se em crer, mesmo sem conhecer o significado do que quer que isso seja. Não tenho mais crenças, nem regras, nem limites. Sou as sobras do que deixaram, os pedaços que resistiram, ainda que sem vontade. Sou alguém que procura a saída, não mais num círculo fechado (lemniscata?). Não há movimento sem uma dor que o preceda. Fechou os olhos, os braços jogados ao lado do corpo. Uma pontada de dor nas têmporas. Procurou pensar no nada, em nuvens, silêncios. Ao invés disso sentiu cheiros. Da infância, do passado, de cada um de seus dias. Lentamente respirava, tentando calar os ruídos de fora das paredes que guardavam o apartamento. Nenhum ruído interno, nem sentimento: esvaziava-se. Abriu os olhos e viu uma imensa onda de fumaça verde, que lhe traspassava a carne. A consciência ainda lhe disse: 'o movimento é relativo', sim, Leibniz, sentiu-se sorrir. Viu-se sobre a cama e fugiu, antes que os bombeiros arrombassem a porta.

 
 

email do autor