GALINHA VERDE
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olhando a velha foto em preto e branco amarelada não percebe-se a real cor da camisa; mas no ombro a letra grega o denuncia. "sim, o seu avô foi integralista", disse-me o velhote como se quisesse que eu me orgulhasse. pergunto se eram amigos há muito tempo e ele sorri. o sorriso é de porcelana. "marchamos junto com o doutor plínio nos anos trinta, meu jovem", responde. vovô quando jovem usava bigodinho à carlitos. como adolf hitler. "com o começo da guerra e a noticia de todas aquelas atrocidades praticadas pelos nazistas", continuou o velhote, "ele se desiludiu: queimou os livros do doutor plínio, os documentos, as fotos... riscou do seu vocabulário a palavra anauê. mas continuamos acreditando que, mesmo ele nos renegando, lá no fundo ainda era um dos nossos". embora evitasse falar desta parte da sua vida, creio que vovô jamais conseguiu apagá-la da sua memória; principalmente por causa do sonho reincidente em que marchava com os companheiros nacionalistas pelas ruas do centro velho ao compasso dos tambores gritando palavras de ordem. como sempre acordava deste sonho aos gritos, nós nos acostumamos e nem ligávamos mais. vovô morreu sem conseguir que o esquecessem - digo isso porque lembro que por diversas vezes ligavam lá em casa, e se era vovô que atendia ao telefone, uma voz disfarçada berrava um sonoro anauê nos seus ouvidos quase moucos. eu, na minha ingenuidade, ficava imaginando tentando compreender por que aquele trote tão infantil e sem graça o tirava do sério. no dia em que deixaram uma galinha verde na nossa porta, vovô teve uma crise de nervos e quase foi parar no pronto-socorro. eu, que mal completara os nove anos, perguntei todo inocente à minha avó, que ainda era viva, se galinha verde botava ovos verdes; e ela que era sempre sisuda deu um risinho de fuinha que deixou o meu avô mais atacado ainda a ponto de cair de cama. à noitinha vovó abateu a galinha verde e fez canja que é comida de doente e deu pra ele na boca. eram tempos difíceis. vovó sempre muito prática, não viu, como vovô, naquela brincadeira tola, uma provocação ao seu passado; mas sim uma oportunidade rara de incrementar nosso pobre cardápio naquele momento. "os adversários nos chamavam de galinhas-verdes", disse o velho como se me revelasse algo novo. e apanhando o chapéu de feltro, se encaminhou para a saída do velório com o pacote embaixo do braço. tinha tentado em vão me convencer a cobrir o caixão do meu avô com a bandeira integralista. e havia lhe dito que era melhor deixar que ele descansasse em paz. |