NO LIMIAR DAS SOMBRAS
(parte cinco)
Beto Muniz
 
 

Jeromo toma coragem, aproveita que estão todos de boca cheia e se levanta, tira o chapéu do gancho feito com a pata dum mateiro que caçou. Resmunga algo que Bertina deve entender como bem quiser e sai. O menino ouve o pai resmungar e entende que ele vai até a casa do Chico. Chico é casado com a irmã da mãe, a tia Balbina. Moram no sitio ao lado, não muito longe, dá pra ver o telhado da casa lá no meio das plantações, mas também não é perto por causa do fio de água, do brejo que separa as duas propriedades.

Por causa do brejo o caminho faz uma volta em torno da mata e por causa do brejo também é que todas as plantações entre as duas casas é um verdaral só o ano inteiro. Pode vir a seca que vier, a baixada que dá lá no fio d'água e a ladeira que termina lá no telhado do tio Chico sempre estão bonitas, vistosas. Por isso que a horta fica na baixada, têm de um tudo, capricho do pai que cercou a horta com taboca presa entre três fios de arame pra proteger das galinhas. Irene e Jorge são responsáveis por aguar as plantas todas as manhãs e todas as tardes, menos no frio que precisa regrar só uma vez, pela manhã. No frio eles acordam de madrugada para molhar tudo antes do sol nascer, se não, a geada queima tudo e os canteiros de folhas verdes ficam esturricados, um seco com cara de queimado. Isso só aconteceu uma vez, mas foi por culpa da inexperiência do pai, depois nunca mais. Sempre que o pai cisma que caiu geada durante a noite ele levanta mais cedo, confere o terreiro, e se geou mesmo já chama os dois para regrar tudo. Tem até tomate plantado no brejo. Na seca o outro lado do sítio, onde fica a plantação de milho, vira uma desolação, tudo pardo, mas é só olhar pro lado da divisa que o mundo continua verde. Única vantagem da seca é que o caminho pra casa do tio encurta, dá para atravessar o fio de água pela pinguela. Na cheia a pinguela continua lá, mas o terreno vira um atoleiro que ninguém consegue passar sem se borrar todo de lama e por isso o caminho enlonga. Tem que rodear a mata. Para não bater perna à toa e economizar caminhada é que o pai e o tio desenvolveram essa mania de assoviar um pro outro antes de sair de casa. Um código. Assoviam bem alto quando querem saber se um ou se o outro está em casa, disposto a prosear. Quando assoviam é porque querem conversar. O que assoviou primeiro fica atento, com as orelhas meio de lado, para o lado de onde sabe que virá a resposta e se ela tardar muito ele enfia os dois dedos na boca e solta novo assovio, estridente, forte. Só o pai e o tio assoviam assim, tão alto, tão longo. O irmão do menino, o Jorge, que é o mais graúdo de todos e único que ajuda o pai na roça capinando os eitos de arroz, está aprendendo a assoviar igual ao pai e o tio, mas ainda não é tão forte e tão longo como o assovio do pai.

Lá do terreiro vem um silvo forte e longo, é Jeromo assoviando pro Chico. Bertina comenta que não é costume do Jeromo sair a noite pra prosear com o Chico. O menino sabe disso, sabe também que o pai não tem medo de andar sozinho no escuro. O pai não é medroso, lá na trilha o pai fugiu do macaco que gritou seu nome porque dumas coisas assim qualquer homem foge mesmo. Tem mais é que correr dum macaco que berra o nome da gente, isso não é ser covarde! Prova que não é covarde é que voltou quando se deu conta que o filho estava ficando para trás lá na mata, antes do córrego. Prova também que o pai não tem medo é que ao ouvir o assovio do tio Chico, vindo lá do meio da escuridão, saiu para andar quase dois quilômetros no breu, rodeando a mata. E nem levou a cartucheira! O menino sente o pé latejando de dor, até faz perder a fome. Ele desiste de jantar e devolve o prato. A mãe pega o prato com uma mão e a mão do menino com a outra mão. O menino gosta de ficar com a mão no meio da mão da mãe, gosta tanto que até esquece a dor no pé. Ele sabe que a mãe gosta dele e sabe também que ela não dá conta de segurar a mão de cada filho e ainda cuidar da casa, das coisas do terreiro e das coisas além da cerca. Então o menino aproveita que a mãe tem tempo de ficar segurando a mãozinha dele e aprecia de todo coração. Até fecha os olhos sentindo o calor da mão da mãe aquecendo a mão dele.

- Juberto, diz pra mãe o que aconteceu.

O filho abre os olhos. Vê agonia no rosto da mãe. Entende que ela estranhou a história e por isso veio aquecer a mãozinha dele. Ela diz que o pai saiu e vai demorar a voltar para que ele saiba que não precisa temer desdizer o pai. A mãe sabe que o menino não estava falando besteira e que alguma coisa aconteceu. Coisa que nem ela nem o menino compreenderam ainda. O filho sabe mais do que a mãe e por causa desse saber ela segura a mão dele, a mãe deseja saber tanto quanto o menino, pois ela tem mais vivência, sabe coisas nesse mundo que um garoto de quase sete anos nem imagina! Ela precisa ouvir melhor esse negócio de macaco gritando o nome do marido, porque só sabendo tanto quanto o filho poderá entender essa história. Juberto sabe que agora, com o pai longe, pode desdizer que não vai levar tabefe na orelha.

O menino sente a mão aquecida no meio da mão da mãe e diz para ela o que aconteceu lá na borda da mata da trilha:

- O pai atirou no macaco e o macaco gritou o nome do pai. Gritou duas vezes.

- Conta direito como foi isso Juberto!

- Foi assim desse jeito mãe.

- Então conta direitinho como foi. Conta desde o início.

- A gente estava atravessando a mata do Dimas, bem onde o Jorge tirou guatambu pra fazer o cabo da enxada dele, o pai viu uma caça lá dentro e atirou sem saber que era um macaco. No que o pai atirou o bichão deu um pulo e um berro dizendo que o pai tinha matado ele. Depois caiu, ficou lá, atrás duma moita de capim colonião estrebuchando e gemendo. O pai ficou olhando pra dentro da mata até o macaco parar de gemer, então entrou para buscar o bicho mas voltou sem nada, só mandou eu correr para casa e começou a correr também.

- Você viu o macaco?

- Eu vi.

- Que macaco que era?

- Macaco grande mãe. Muito grande.

- Bugio?

- Maior.

- Por essas bandas não tem macaco maior que o bugio.

- Esse era. E ainda gritou que o pai matou ele.

- Vai dormir Juberto. Depois eu converso com o seu pai.

(continua na próxima atualização)

 
 

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