MULHER INVISÍVEL
Virgínia Círchia Pinto
 

Dia desses pensei em me tornar invisível.

Entenda bem, não sumir, desaparecer, fugir de casa, morrer.

O desejo era de ficar exatamente como estou, mas inacessível ao mundo que me cerca. Desde o momento em que abro os olhos alguém está ao meu lado cobrando minha atenção e/ou solução.

- Preciso comprar salada fresca para a senhora, o amaciante está no fim, ontem lavei as peças de roupas com sabonete...

Interrompo minha empregada dizendo quanto ela acha que precisa para resolver o assunto.

- Ah, o de sempre...

Continuo meu ritual do café da manhã e chega a caçula.

- Mãe, hoje vou almoçar no Mac, posso pegar dinheiro na sua carteira?

- Claro, mas outra vez?

Sai correndo sem nem ouvir meu lamento.

A mais velha, como sempre, está a um passo de perder a carona e entra esbaforida na cozinha.

- Nem vem, hoje não vai dar tempo de tomar café.

Despede-se me beijando, enquanto continuo meu olhar perdido para a empregada que tem mais algo a me dizer, mas não tenho vontade nenhuma de ouvir. Saio correndo de casa. Entro no carro e procuro uma música para me colocar no clima de: ” Temos um belo dia pela frente...” Olho o marcador de gasolina.

- Por que sempre tenho que colocar combustível quando estou atrasada?

E me lembro que não gosto de parar no posto para abastecer e que agora além de parar, tem que ser naquele que carrega as milhagens do cartão de viagem. E eu vou me estressar? Vou nada. Penso. Pior seria se não tivesse trabalho a cumprir.

Já no trabalho, olho minha agenda e imagino a seqüência de atendimentos que terei e o tipo de trabalho de cada um. Confiro com a secretária as entregas de próteses, os horários confirmados, as emergências e inicio meu atendimento. Entre um e outro paciente retorno telefonemas, resolvo pendências, recebo pedidos dela (secretária) de autorização para encaixe em horários possíveis e impossíveis. Respiro fundo. Coloco o próximo em minha cadeira e parece que tudo aquilo desaparece como num passe de mágica.

- Doutora, lembra que tenho medo e que não gosto de anestesia? Hoje quase nem vim. Estou atarefado demais.

Neste momento parece que uma aura de paciência e poder me envolvem e vou acalmando meu paciente. Pergunto se o cachorro dele melhorou, se a filha entrou na faculdade e toda aquela tensão vai se dissipando dele, do ambiente e consigo fazer com que relaxe, ouça a música que toca ao fundo e eu consiga fazer o tratamento que precisa. Semana passada, um chegou muito atrasado. Como raramente me atraso no horário, chegam todos esbaforidos e pedindo desculpas.

- Desculpe-me doutora, estava numa reunião e todos começaram a falar e eu só pensava no horário que tinha aqui com a senhora.

Peguei sua pasta. Como era pesada! Comentei que isto lhe traria uma dor nas costas e que ele se acalmasse, pois o mais importante era ele ter conseguido vir. Sentou e me sentei ao seu lado. Fui falando de coisas banais, como o tempo, o feriado, a Semana Santa (este paciente era um padre), e ele foi se acalmando até fechar os olhos e eu perceber que poderia executar meu atendimento tranqüilamente, por que ele já estava tão relaxado que começava a ressonar.

Sempre me lembro do que dizia um professor dos tempos da faculdade, quando recebo alguém que se mostra apreensivo.

- Todos os pacientes ficam apreensivos quando vão ao dentista. Imagine você mesmo sentado ao lado de alguém que sorri para você e tem uma agulha nas mãos? Impossível não ter medo. Só os loucos não têm...

E assim meu dia prossegue com seu ritmo peculiar e ao vencê-lo, volto para casa. No carro, coloco uma música que represente meu estado de espírito. Às vezes lenta, outras romântica e mais raramente uma bem agitada. E vou me transportando para o lugar que mais amo estar. Ao abrir a porta minha cachorra pula em mim sem parar e sempre alguém faz um comentário enciumado pela festa que ela faz.

- Nossa, parece que você esteve viajando um mês...

Pego ela no colo para acalmá-la e continuo entrando na casa. Vejo a filha mais nova, no computador, mal me responde como foi seu dia.

- Rapidinho, mãe. Já te conto.

Ameaço convidar a mais velha pra jantar e logo vou ouvindo.

- Mãe, comi chocolate até agora!

Pergunto à empregada como correu o dia e ela começa a contar, nos mínimos detalhes... Não ouço. Sonho me tornar invisível naquele exato instante só para me desacelerar. Começo a comer minha salada fresca, envolvida pelo cheiro do grelhado que ela prepara tão falante, para mim. Respiro fundo... Sinto remorso pelo que sinto e imediatamente me perdôo.

Naquele instante delicioso, sou uma mulher, como tantas outras, apenas voltando para casa...

 
 

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