OCORRÊNCIA
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O sargento apresentou-se à delegada trazendo a moça pela mão. Era a terceira vez só naquele agosto. Os hematomas em volta dos olhos escondiam a beleza do verde das íris, quartzos quebrados pela violência dos golpes. A boca onde faltavam alguns dentes curvava-se num esgar de choro, os lábios finos agora edemaciados pelas bofetadas. Observando a face quase juvenil, a delegada pensou que a moça tinha idade para ser sua filha. Mandou sentar, dirigindo ao sargento perguntas breves sobre a ocorrência. O de sempre, doutora. Violência familiar. O vagabundo saía pra beber e, quando voltava, sentava a mão na pobrezinha. A delegada dispensou o sargento, permanecendo a sós com a moça. Cafezinho? Não, obrigada! Como se antes estivessem represadas, agora as lágrimas desciam mais livres rosto abaixo, lavando em parte a sujeira imposta pela mão do agressor. As longas mangas do surrado blusão de lã escondiam as unhas roídas de medo e vergonha. Teria uns dezenove, vinte anos. Cabelos bonitos, mas maltratados pela necessidade, descuidados pela pobreza. Escondia os punhos entre os joelhos, baixando os olhos, como um cachorrinho que mete o rabo entre as pernas para escancarar sua submissão. A delegada ofereceu a caixa de lenços de papel, para que a moça pudesse enxugar as lágrimas. Ela tomou o lenço na mãozinha pequena, arregaçando a manga puída do blusão, usando-o para limpar o nariz, uma mistura de coriza e sangue. Com um meio sorriso, entre pena e escárnio, a doutora perguntou se, dessa vez, a moça não queria prestar queixa. Respondeu que não. Que, apesar de tudo, ele era bom com ela. Que trazia presente. Que, nos melhores momentos, a chamava de princesinha dele. Só quando bebia, uma ou duas vezes por semana, é que ficava violento. Mas que não tinha problema, ela não se importava. Sabia que era porque ele gostava muito dela e que ficava com ciúme. Ela era bonita, sabia disso. A doutora não achava? Mas não tinha motivo pro ciúme. Era bobagem dele. E a bebida, que mexia com a cabeça. Ele tinha a cabeça fraca, a doutora não sabia? Mas que não, não queria que ele fosse preso. A delegada insistiu. Disse que esse tipo de coisa só continuava acontecendo porque as mulheres agredidas não exerciam seus direitos. Que não era possível querer proteger um homem que bate. Que ela não precisava ficar com vergonha, e que sua queixa poderia incentivar outras mulheres a fazer o mesmo. Não, doutora. A senhora não entende. Eu gosto dele. Não é por vergonha, não. Ele é o meu homem e eu sou a princesinha dele. O sargento foi chamado. Deveria deixar a moça no barraco, de viatura. Aproveitasse e avisasse o marido que a delegada não queria mais saber daquilo. Da próxima vez, com queixa ou sem queixa ele seria preso. O sargento bateu os calcanhares e saiu a cumprir sua missão. Setembro. O sargento apresenta-se à delegada, trazendo a moça pela mão. |