A CARTA
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Tantos lapsos, tantas lacunas, tantas veias abertas, e aquela distância que gritava o silêncio daqueles dias outrora dourados agora cinzas. Tantos lapsos, tantas lacunas, tantas veias abertas. E por isso, ou por qualquer outra coisa, ele esperava que ela voltasse. E foi uma espera vã. Talvez o reencontro fosse mesmo impossível. Não pela geografia - ainda que ela tivesse ido para a Índia, para Sorocaba, para o inferno, sempre se dá um jeito, a gente vê como faz, mas não viram, não se reencontraram, ela nunca soube da espera dele e, portanto, não houve falha, não houve promessa vã - não daquela vez, aquela vez que nem era vez, porque não combinada. Ou pior: que o reencontro fosse como da última vez (esta sim, "vez"), em que já não se conheciam, preferindo as gritarias nunca antes trocadas ao fantasma do amor natimorto ainda encontrável, em migalhas que fosse, nas entranhas de cada um, nas carnes dela tão conhecidas a ele, na sede desesperada dele tão conhecida a ela, na vulgaridade das línguas tão conhecida de ambos. Era certo que só o tempo para apaziguar aquelas acusações mútuas, como era mesmo que ele tinha dito?, "sua ordinariazinha", sim, "ordinariazinha desprezível", era isso, e isso a magoara tanto, mesmo consciente de que estavam, ambos, fora de si - não importava. Ela estivera com ele, ao lado dele, em momentos cruciais para ambos - não era desprezível, fora ou dentro de si, podia ser tudo, até ordinária, mesmo ordinariazinha, menos desprezível, e isso a magoara. E revidara da forma mais vil possível, chamando-o de "fracassado". Justo ele, a quem ajudara a salvar de uma tentativa de suicídio. O próprio loser no conceito americano do maniqueísmo, a quem ela própria fora decisiva na recuperação de sua auto-estima, para depois aquilo: fracassado. E com aquelas veias abertas, sabiam que não saberiam fechá-las, e então o reencontro impossível. Nem o tempo, nem as gazes, nem saudade, nem perdão. Então ocorreu que ela talvez lhe escrevesse. Mesmo nos tempos dantes, dourados, ele sempre sentia que ela tinha algo a dizer, cobra e o bote, mas que reprimia, vomitando para dentro a expressão do que quer que aquilo fosse - ele nunca soube o que, para que, se necessário. Só pressentia. Ela tinha uma letra bonita, não dessas de mulherzinha, uma letra assim, tão bonita. Então foi sentindo a iminência da carta dela, uma iminência lenta e decrescente, porque se adiando, se adiando, e o tempo, a porra do tempo que passava, ela cada vez mais vívida nele, a carta que ela lhe escreveria, naquela letra bonita, tão bonita a letra dela, e que chegaria para ele, tinha que chegar, porque o reencontro impossível, porque tinham tanto a dizer e a desculpar, ele queria a reparação do fracassado mas, muito mais do que isso, dizer-lhe que não, que ela não era desprezível, que ele sim desprezou-se por dizer aquilo, martirizou-se, suicidou-se aos poucos naquele crescendo de distância imposto pelo tempo, o grande filho da puta, o tempo, a carta, ela tinha que escrever, qualquer coisa que fosse, ele esperava pela letra dela, tão bonita, o desprezo, o fracasso, a distância, a saudade, não, não era exatamente saudade, mas essa sensação que fica de alguém que já esteve e não está mais, e talvez não esteja nunca mais, mas, por já ter estado, ela fica, quer dizer, a sensação, as referências comuns, aquela boca vulgar, e ele lembra, e não é uma lembrança assim saudosa, é só uma lembrança, porque as lembranças são todas assim: não querem dizer que sentem a falta dela, ou que não sentem, que a querem de volta, ou que não a querem, apenas lembram, porque são lembranças, que crescem na progressão aritmética do tempo, o grande filho da puta, mas, a despeito dele, e se ela vier?, quer dizer, a carta dela, o que ela terá escrito? Então ele se preparou, redigindo várias respostas possíveis, porque a carta dela viria, isso era mais do que certo, ela só estava se escorando no grande filho da puta, o tempo, para lhe escrever, e quando finalmente sim, ele já teria as respostas prontas, porque antecipado, dessa antecipação que fuzila a própria necessidade da comunicação, como a se dizerem sem dizer "eu sei, meu bem, eu sei", aquela compreensão só possível a quem já esteve, e não é sentir a falta dela ou não sentir, querê-la de volta ou não, é outra coisa, são os lapsos, as lacunas, as veias abertas. Então o tempo a distância a lembrança o cansaço a espera o comum a resposta antecipada do que pode que não pode que adia que precede que anuncia a chegada de quem não tinha estado na história. Tudo, menos a carta que não chegava. E se a carta dissesse que sim? E se a carta dissesse que se? E se a carta reiterasse o fracasso? E se se dissesse que a carta? Se carta dissesse a que se? Se dissesse e a carta que se? Se o fracasso dissesse que a carta? E se a carta fosse entregue a Drummond? Então ele temeu a carta que, agora, invertia a iminência: crescente. E como o tsunami pressentido pelos bichos que se salvam, a carta chegou. A carta finalmente chegou, cantada em viva voz pelo carteiro feliz, uma carta, senhor, uma carta para o senhor, senhor. Naquela letra tão bonita, tão bonita a letra dela. A carta, uma carta dela. No carimbo, a marca da filhadaputagem: dia X, mês Y, ano Z. Derrotado pela carta impossível, ele não teve forças para abri-la. E se a carta?, e se a carta?, e, com o isqueiro, ele incendiou sua paz pelo lado inferior direito do envelope. |