NO LIMIAR DAS SOMBRAS
(parte quatro) |
Beto Muniz
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O menino sabe que não falou besteira, mas não protesta. Não vai desdizer o pai, não convém. As poucas vezes que desdisse o pai, a orelha ficou vermelha e o ouvido ficou zumbindo mais de hora por causa do pescoção imediato. Ele é capaz de lembrar o quanto a mão do pai é pesada, forte, dolorida, então não vai valer a pena desdizer o pai e depois ficar com o pé e a orelha doendo ao mesmo tempo. Por instantes o silêncio toma conta da casa e o menino pensa que o pé dói tanto que talvez pudesse dividir essa dor em duas dores menores. Bastava desdizer o pai e levar o tapão na orelha. Ficariam as duas dores doendo juntas, uma aqui em cima na orelha e a outra lá embaixo, no pé arrebentado. "Divididas assim pode até ser que dê pra agüentar melhor". O pensamento vem e vai embora rapidinho, o menino decide ficar apenas com a dor latejante do pé. O homem volta a conversar com o próprio desespero, mas não sabemos a quantas anda esse diálogo. Ele coça o cocuruto, está amuado na penumbra, sentado no canto da casa onde tem um banco e uma pata dianteira de veado mateiro, seco, com os cascos voltados para cima servindo de gancho para chapéu. Jeromo está com vontade de tirar o chapéu do gancho e ir falar com o Chico, mas não tem coragem de dizer pra esposa que precisa sair. Também não quer olhar muito nos olhos dela, não quer encarar a mulher que está olhando dele para o filho, do filho para ele, só assuntando os dois. Claro que ela sabe que não ouviu tudo que precisava ser ouvido. Bertina não é besta! Jeromo sabe a mulher que tem em casa, que tem na vida, que teve a sorte de conhecer, se apaixonar, casar e arrastar para esse canto do mundo onde ela não merecia se acabar. Diacho de vida! - ele reclama. Mas a mulher não se queixa, até diz que pior seria ela se acabar dentro duma casa na vila, cuidando dos filhos e o marido fora o tempo todo, tocando carro de boi na estrada. Jeromo concorda com ela, mas nem por isso a vida deixa de ser um diacho. Quando se casou ele deixou de fazer viagens transportando sal, querosene e arame em carro de boi e comprou a fazenda de ameia com o Chico, seu sócio no negócio de transporte. Dividiram as terras e pouco depois Bertina já estava com o primeiro filho na barriga, o Jorge, foi quando Balbina veio ajudar a irmã e acabou se arrumando com o Chico. O casamento deles quase termina no hospital, Bertina teve a Irene um dia depois do casório, e dois dias depois teve a derrubada das 'Quarenta'. Todo mundo achava que a construção da hidroelétrica ia trazer desenvolvimento para a vila, mas não foi o que aconteceu. Ninguém da região foi contratado para trabalhar nas obras, veio foi muita gente de fora e nem todo mundo era gente boa. A vila virou uma bagunça, um bando de desordeiros desencaminhando as moças de família e corrompendo os moços com bebidas e jogos. Quando foram embora deixaram para trás quarenta casas a mais na vila, quarenta casas iguais, casas de operários, vazias, as 'Quarenta'. Trinta casas completamente vazias, e uma dezena delas ocupada por mãe solteira abandonada à própria sorte. Sina de mulher solteira que tem filho é sofrer. A família rejeita, a vila rejeita, a igreja rejeita, a sorte rejeita. As mulheres só não foram rejeitadas pela mãe de Bertina, Dona Albina, professora de todo mundo na vila que tinha menos de trinta anos. Mulher de fibra, solidária, não dava nem pelota para as caras torcidas do povo. Dava era estudo e cursos de crochê, de bordado, de costura para as mães solteiras, dava seu tempo em prol das coitadas. Além de arrumar serviço para duas delas, uma na casa da Dona Veneranda, que ficou entrevada depois dum derrame, e para outra na fazenda do Vantuir Rosa. Dona Albina arrumava encrenca até com o padre, fazia campanha na igreja para ajudar as crianças sem pai. Depois das missas de domingo perturbava o vigário para que ele não descuidasse das mães e filhos das 'Quarenta', que a esmola servia mesmo era para ajudar os desamparados. Mas para dificultar as coisas o pessoal da usina colocou as 'Quarenta' a venda, todas elas, inclusive as dez casas onde morava mãe de filho sem pai, os 'filhotes da ligth'. A data do leilão saiu no jornal da comarca e foi anunciado nos auto-falantes das igrejas nas vilas vizinhas, muita gente veio conhecer as casas. No domingo a praça da igreja matriz ficou apinhada de carroça e cavalo, tudo gente de fora querendo comprar casa, diziam que o preço duma 'Quarenta' era uma pechincha, mas para o povo da vila qualquer dinheiro era muita coisa. Querer tirar as casas das coitadas foi uma desumanidade sem tamanho, causou tanta revolta na vila que as 'Quarenta' foram demolidas. Uma coisa era os familiares e vizinhos rejeitarem as mães solteiras, outra muito diferente era a usina querer deixá-las sem teto quando a culpada pela desgraça dessas moças era a própria usina. Primeiro as mulheres da vila se uniram a Dona Albina, depois se rebelaram contra a usina e convocaram os maridos, os filhos, os parentes e até o padre para se solidarizarem com as mães solteiras. Diante da insensibilidade da usina, que nem mandou representante para negociar uma solução, botaram as casas abaixo um dia antes de acontecer o leilão e deram a questão por encerrada. Não se sabe de onde, mas veio até um Massey Ferguson vermelho, brilhando de novo, que causou grande admiração em quem nunca tinha visto um trator. E na época pouquíssima gente tinha visto veículos movidos por motor, mas foram os caminhões nas estradas que tiraram Jeromo e Chico do negócio de transporte. A parelha de bois puxando o carroção perderam espaço para a velocidade dos caminhões Ford com motor movido a diesel. Desde rapazinho que Jeromo estava nessa vida de transportar sal, querosene e arame, no início com uma parelha de bois, depois se juntou em sociedade com o Chico, amigo de infância, e trabalharam até conseguirem quatro parelhas de bois e dois carroções. O negócio tinha concorrência, mas os dois amigos levavam o trabalho muito a sério e conquistaram a confiança dos maiores comerciantes da divisa de Minas Gerais com São Paulo, trecho que cobriam semanalmente. Eram seis dias para cobrir a distancia entre a comarca em São Paulo e o Triangulo Mineiro. Depois que começaram a comer poeira dos caminhões Ford foi que resolveram desistir desse negócio, venderam bois e carroças para uns concorrentes que estavam abrindo novo caminho para o Mato Grosso, trecho onde não tinha boas estradas para caminhão. Com o dinheiro dos bois, carroças e mais algumas economias, compraram a fazenda Sobral, era longe da vila, mais de três léguas de distância, mas a terra era boa, tinha nascente de água, era um bom lugar para criar família, ainda mais com a construção da hidrelétrica e da chegada da luz elétrica na vila. Mas a usina não trouxe progresso, só um mercado e quarenta casas que o Massey Ferguson derrubou. Sozinho o Massey Fergusson derrubou mais da metade das casas, era só ele encostar o parachoque de ferro fundido numa parede que ela caia. Sem as 'Quarenta' para morar algumas das mães solteiras ganharam o perdão da família e puderam voltar para casa dos pais levando a cria enjeitada. Uma ou outra coitada que a família não perdoou acabou se ajeitando com ajuda da incansável Dona Albina, um exemplo de ser humano, merecia mesmo era uma estátua no meio da praça da matriz. Da usina não apareceu ninguém para reclamar. Não teve leilão, não teve venda de casa nenhuma e depois disso nem tinha mais casa, apenas quarenta escombros que pertenciam à usina. A vila, que nem rede elétrica ganhou com a chegada da usina, voltou a ficar do mesmo tamanho de antes das obras. Nem o mercado novo, que tinha tomado quase toda a freguesia da venda do Ferrari, permaneceu na vila. Fechou as portas e a pintura 'Secos e Molhados' ficou desbotando na parede até a prometida rede elétrica ser instalada, foi quando um militar aposentado comprou o imóvel e inaugurou a primeira sorveteria da região. Só os escombros das 'Quarenta', o prédio da sorveteria e os filhos bastardos a usina trouxe de mais para a vila. Um dos filhos sem pai era o Zé Florêncio. Diacho! Jeromo nem sabe porque estava lembrando da derrubada das 'Quarenta'. Amuado na penumbra o homem observa a esposa que dá uma ultima conferida no curativo feito com restos de lençol. Bertina sente que seu marido acompanha com os olhos todos seus movimentos, ela queria tirar essa história a limpo duma vez, mas é sensata, pode não ter riquezas, mas é sábia, carrega consigo, impregnado na pele, nos genes, no espírito e no instinto o histórico admirável da Dona Albina, a incansável guerreira sempre em busca duma batalha. Bertina sabe quando é hora de falar e quando é hora de se calar, aprendeu com a mãe que existe hora para tudo, até hora para dispensar um combate. Esse é o momento de deixar passar o tempo, por enquanto Bertina não deve insistir nessa história de macaco atirado gritando o nome do Jeromo. O homem já teve tempo de dispensar o desespero, já não sente ele bailando dentro da cabeça e zombando dos seus pensamentos. Jeromo está decidido a atravessar o brejo na escuridão da noite, ele vai falar com o Chico, vai dividir seu medo e apreensões. Essa decisão teve um efeito tranqüilizante, falta apenas tomar coragem e dizer para Bertina que vai sair. Ele observa a figura da mulher ajoelhada aos pés do filho e tenta resgatar na memória quando foi que viu essa cena. Num outro local, num outro tempo ela estava ajoelhada aos pés do filho com todos esses panos, essa bacia... Foi numa pintura, um quadro que transportou faz muito tempo sobre as sacas de sal. Bertina com esse resto de lençol no ombro lhe caindo pelo colo parece Madalena ungindo os pés de Cristo. As juntas dos joelhos estalam quando ela se levanta e passa diante do marido com a bacia de água morna, vermelha de terra e sangue. Joga a água pela janela, ninguém vai pisar o barro desta água. Até que amanheça o dia ninguém vai ao terreiro, mas a mulher não pensa nisso. Apenas jogou a água no terreiro e guarda a bacia junto aos 'trem' que vai lavar depois da janta. Os filhos estão famintos, esperando a comida que está esturricando na chapa do fogão. Ela tira as tampas das panelas, distribui os pratos e chama os filhos. Um por um, pequenos, médios e graúdos vem buscar a porção que a mãe vai distribuindo criteriosamente nos pratos esmaltados. O menino médio, de quase sete anos, não precisa se levantar manquitolando e pisando panos e ervas. A Irene, a mais graúda, moça feita, quase mulher, que aprendeu a mentir depois que se enrabichou pelo Zé Florêncio, obedece a uma ordem materna e faz o prato do irmão ante de se servir. O marido não come, dispensa a vez de se servir aumentando ainda mais as desconfianças da esposa. Certamente que ela ainda não ouviu tudo que precisava ser ouvido, mas deixe estar, agora é hora de alimentar seu caçula, o pititico ainda não come sozinho e periga o pobrezinho dormir de bucho vazio. Mas isso a mulher jamais vai permitir que aconteça! (continua na próxima atualização) |