NAQUELA NOITE CELEBRAMOS
Bárbara Helena
 

“And some say love is holding on
And some say letting go
And some say love is everything
Some say they don't know”

(Perhaps love)

Nós conhecemos Amélia em Pedreira das Almas, no Recanto das Flores, hotel “familiar”, eufemismo para designar recursos mínimos e comida barata, que se tornava real pela ligação de parentesco entre dona, empregados e o sorriso amplo que nos recebia.

Mulata alta e farta de quadris, após a morte do marido, transformara a casa onde morava em pensão, depois hotel sem estrelas, com três quartos em cima e dois embaixo, se, por extrema generosidade, aceitássemos chamar assim ao puxado embaixo da escada, onde cabiam apenas uma cama modesta e a mesinha.

Para nós, acostumados aos muquifos de beira da estrada, era uma maravilha. Podíamos desfrutar do jardinzinho cuidado, carinho e simpatia. A filha adotiva, Rita, cuidava da arrumação e faxina e ainda ajudava Dona Eufrásia, sua tia, na cozinha. E havia o Bentinho, neto criado como filho, que acompanhamos crescer e virar Zé Bento, funcionário de prefeitura e estudante de Direito. Bentinho era nosso faz tudo – comprava cigarros e cerveja, escondia guimbas de baseado e ouvia com olhos brilhantes a guitarra de Billie e a voz dolente de Marina, sua deusa.

Uma tarde, antes do último show em uma cidade perto de Pedreira, recebemos o convite através do nosso agente da época, o Joaquim, português amante de blues. A letra floreada avisava que Amélia Pereira dos Santos, José Ferreira Goulart e Denise Ferreira Goulart convidavam para o casamento de seus filhos, José Bento e Aparecida, na Igreja Matriz de Pedreira das Almas. A cerimônia seria no dia seguinte e os noivos, após os cumprimentos, receberiam os convidados numa recepção no salão da paróquia.

Na mesma hora, Mimi, Billie e eu decidimos que seria impossível faltar ao casamento de Bentinho. Eram quatro horas até Pedreira, uma bobagem para estradeiros como nós.

Marina se recusou a ir. Alegou dor de cabeça, TPM bicho do pé. Na verdade, estava mergulhada em uma das suas depressões profundas, encharcadas de vinho e leituras de Proust. Marina era estudada, lia passagens em voz alta, achei bonito, triste, só que não cabia mais nada em mim além de vida. Nestas fases ela cantava como nunca e se recusava a existir. A gente sabia e respeitava.

Deixamos Marina no sono da uva e saímos, depois do almoço, com trailer, instrumentos e boa vontade.

Chegamos ao Recanto das Flores às seis horas, o casamento estava marcado para as sete e Rita era a única ainda no hotel, tentando convencer Lulu, a cadelinha poodle, a sair do quarto de um dos hóspedes para fechar a porta. Vendo seus esforços inúteis, apanhei a lata de biscoitos na cozinha e gritei: Lulu, biscoito! Só que a lata estava mal fechada e os biscoitos se espalharam pelo chão fazendo a festa. Mas, finalmente, a porta foi fechada, os biscoitos varridos e nós quatro pudemos nos arrumar para a cerimônia.

Tínhamos trazido as melhores roupas de cena – eu, um vestido azul meio justo, o preferido de Billie, com um decote nada parecido comigo e saltos altíssimos. Prendi os cabelos e me achei bonita. Mimi surgiu esplendorosa, num vestido vermelho em que sobrava mais Mimi do que deveria aos olhares castos de uma platéia de Igreja. E Billie estava lindo de terno. Não via meu Billie bem vestido assim desde o finado casamento de Mimi. Ela também lembrou porque ficou triste por dez segundos. Depois voltou a ser a mesma. Não desperdiçava vida com passado. Rita parecia uma evangélica ao nosso lado, muito clara, o vestido cinzento e severo, cabelo liso sem enfeites.

Pensamos encontrar os noivos já nos cumprimentos, o que seriam bem do nosso agrado, infiéis ateus que éramos, exceto Mimi, barganhadora com os santos.

Mas nos enganamos. A noiva, católica fervorosa, exigira casamento com missa.

Entramos depois do Evangelho.

Um coro de jovens acompanhava o órgão e a guitarra. A conhecida espinha travou minha garganta. Por entre o mar de ombros, vi uma cena inusitada - ao lado da cabeça negra e imóvel de Bentinho, a noiva dançava ao ritmo da música, balançando o véu branco, como uma personagem de opereta.

Achei aquilo tão lindo! Passei o resto do casamento comovida e entregue. Billie olhava para mim, sarcástico, me conhecia bem.

Na passagem do cortejo de volta, entre as flores dos bancos, Bentinho acenava com sorriso orgulhoso no rosto escuro, acompanhando a noiva pequena e linda. Amélia nos viu e abraçou, emocionada. Tão digna, vestido prateado combinando com os cabelos. Até Billie perdeu a pose. Mimi já chorava há anos, chora em casamentos, enterros e batizados. Mimi é o rio da vida em corpo de crooner.

Timidamente, Amélia perguntou:

- Escuta, vocês poderiam... quer dizer, se não for pedir muito... cantar uma música durante a festa? Seria uma honra para o Bentinho.

Nem esperei a reposta dos outros e respondi:

- Mas é claro! Será uma honra para nós. Não apenas uma, quantas você quiser.

Ela sorriu radiante. O que eram os cigarette blues, diante de Amélia? A filha sumiu no mundo, deixou o neto pequeno e as dívidas. Ela assumiu tudo e todos, criou Bentinho e entregou pronto para sua pequenina noiva.

O sacristão arrumou dois microfones razoáveis e nós pegamos os instrumentos no carro. Conversei com Billie e abri o nosso pequeno show:

- Esta música é dedicada a Dona Amélia, que acolheu os Cigarette Blues com tanta amizade durante todos estes anos.

Billie começou o fraseado melódico e eu entrei:

“Não sei Que intensa magia Teu corpo irradia Que me deixa louco assim, mulher
Não sei Teus olhos castanhos Profundos estranhos Que mistério ocultarão, mulher
Não sei dizer, Mulher”

Ela ficou vermelha, puxou o ar e sorriu. Era sua música preferida. Tantas vezes a ouvi cantar, temperando feijão, cuidando das flores, limpando o Coração de Jesus que enfeitava a sala.

Mulher.

Enquanto cantava, lembrei de Dona Amélia carregando sozinha o Recanto, de Eufrásia, cheia de reumatismo cozinhando com alegria inquebrantável, de Rita, trabalhando sem descanso, escondendo amores e desgostos em rezas confiantes, de todas as mulheres que somos, Marina, seus vinhos e livros, Mimi, os caminhoneiros e a cerveja, eu, meus cigarros e meu amor vagabundo.

Mulheres, que enterremos facas diariamente em nós, amanhecendo renascidas. Terra. Ciclos de Bentinhos sendo criados e velados, mães e amantes. Pendurando homens no armário, guardando filhos em gavetas, segurando enxadas de dores e alegrias. Para semear a vida, esta coisa esquisita que teimamos em preservar.

Cantei com minha alma e corpo femininos. Cantei como nunca.

Depois vieram os blues. Muitos blues, a guitarra gemendo. E músicas alegres para o povo dançar.

Naquela noite celebramos. Entre a gente humilde e o amanhecer.

 

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