GLÓRIA
Leo Agapejev de Andrade
 
 

Dividíamos um quarto e quase toda a lucidez do mundo. Quase, até então.
- Tenho sono - disse baixo - e quero acordar tarde.

- Para que?

- Não sei, mas quero acordar muito tarde.

Deitou-se em sua cama e se virou para a parede. Virei a cara logo em seguida, voltando-me para o tapete preto aos meus pés. Na verdade, já era tarde para qualquer coisa. Quanto mais esperar:

- Mas gostaria que pensasse no que faria se eu estivesse morto pela manhã. Se fosse você, eu evitaria fazer barulho enquanto dorme para que você morra em paz. Então, o que faria por mim se soubesse que eu morreria durante o sono?

Era isso. E eu sabia a resposta certa:

- Te mataria antes - respondi certeiro.

E assim foi. Ambas as promessas foram cumpridas gloriosamente.

*****

Hoje, faz três dias que todos se foram, que a consciência se esvaiu em sangue, que a luz do quarto fez-se sombra. Hoje, o que me resta é um cheiro insosso vindo de não sei onde e sentido sob não sei quais circunstâncias físicas pós aquilo-que-eu-era. Antes. Havia uma boa intenção ao proceder daquele jeito: o horror da ação. Apenas fi-lo, no entanto. Como conseqüência, há três dias que não mais sinto o cheiro do gás, o cheiro do gato, o cheiro do incenso, o passar das horas, o fluir da música. Mas nem deste modo tudo isto me fez tão bem como, por exemplo, fazia aos que dirigiam carros bons em curvas fechadas e que estacionavam entre dois carros numa facilidade admirável - como é possível? - , à hora do rush, em ruas e avenidas movimentadíssimas. Não. Fez-me bem como a audição a surdos de nascença e a visão a cegos de nascença.

Mudo, sempre fui: saída de minha boca, não havia voz que se ouvisse nem fala razoavelmente articulada que se notasse. Havia sim a pura indiferença em relação a minha mudez funcional desarticulada em meio àquele trânsito infernal de pessoas e situações. Havia, sim, e disto eu tenho certeza. Enfim - enfim, e que bom - foram-se todos. Mas foram-se também os agradáveis minutos ansiosamente esperados por meses a fio... migalhas de felicidade gratuita e sem começo nem conseqüência que logo se perdem no intestino dessas pombas que surgem do nada, vivem em buracos e se alimentam dos restos da civilização humana.

Mas em meio àquilo tudo havia algo ali que não me alcançava porque, talvez, eu falhasse em tentar alcançá-lo por mim mesmo. Eram luzes, odores, sons e fúria a uma velocidade furiosa que me atropelava enquanto atravessava os anos com o desrespeito próprio das coisas sem fim. Fúria e ódio. Ódio a minha própria espécie e seu embasamento divino - com o consentimento mudo da mesma: Ave-Maria e Pai-nosso que sentam-se à mesa e que entornam as garrafas de sangue da vida com os desgarrados do mundo, num ato de secreta desilusão para com a história do tempo na Terra e num conseqüente ato de extermínio programado cuidadosamente para que não reste nenhuma raça instantânea de seres socializados - a começar pela minha raça.

Assim, o que importa mesmo é que nada impuro por natureza deve restar, a partir de minha morte. Carnificina sim, e sem possibilidades de glória posterior e blábláblá.

Nem mesmo por havermos feito o que fizemos.

 
 

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