ENQUANTO TOCAR A MÚSICA
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Vai
ter uma festa RÁPIDO E RASTEIRO - Chacal
Tomei um banho, escovei os dentes e fiz a barba com a mesma indiferença de sempre. Ao entrar na sala, vi aquela que deveria ser minha esposa me sorrindo meigamente. Um senhor que usava um pesado par de óculos fundo de garrafa, bigode branco e fisionomia austera olhava com desprezo para mim. Por sua vez, uma senhora de olhar doce e cabelos tingidos de loiro parecia consolar aquele homem. A minha suposta esposa tinha aquele mesmo olhar doce. Eram seus pais, meus sogros, portanto. Eu ainda quis duvidar desse quadro que não chegava a ser um pesadelo, mas que possuía as nuances e a estranheza de uma tela de Miró ou Dalí. Supus então fosse possível fechar os olhos e desejar profundo, até conseguir romper as barreiras daquela suposta realidade, pois tudo não passava de um grande engodo, talvez um desses distúrbios que acometem momentaneamente certas pessoas, fazendo-as crer que estão em lugares nunca antes visitados, quando na verdade estão em seu quarto, preparando-se para dormir. Eu bem que tentaria realizar esse esforço, não fosse uma voz conhecida a qual atravessava o corredor neste exato momento e que se dirigiu a mim: - Você está muito folgado para um recém-casado, hein rapaz ?! - foi o que disse minha mãe enquanto caminhava em direção à mesa levando nas mãos uma travessa de arroz. Almoçamos. A única vez que conseguir ver os dentes do senhor de óculos e bigode foi durante o momento em que ele se saciava com o filé à parmegiana. Não sorria, quase não falava. A senhora de cabelos tingidos era risonha, mas pouco falava também. Minha mãe era quem mais conversava. Não se fartava de falar sobre minha infância, pequenos fatos da minha juventude. Eu me entediava demasiado. Minha esposa pareceu compreender o meu fastio, mas nada disse ou fez. Quase não comi. Foram-se todos. A minha preocupação agora era que todos os finais de semana essas cenas voltassem a se repetir. Não tardaria para que eu avançasse com meu garfo para cima do velho de bigode branco. No fundo era o que eu faria com ele todas as vezes que o encontrasse, em pensamento. Entardecera, as primeiras estrelas já despontavam no firmamento. Precisava espairecer, dar uma volta e colocar os pensamentos em ordem. Eu iria participá-la da minha decisão e sair por aí, simplesmente. Caso ela se opusesse, nada poderia fazer. Sequer sabia seu nome. - Vou dar uma volta! - Tudo bem, querido! Mas não demore, o jantar está quase pronto! - e sorriu mais uma vez com seus lábios e dentes de candura. Caminhava errante, me aproximava do centro da cidade. Uma música melancólica me convidou para um local igualmente triste. Deixei-me conduzir sem qualquer expectativa ou vontade própria. Sentei ao bar e pedi qualquer coisa. Tocava um tango, não sei se Gardel ou Piazzolla. Dois casais davam demonstrações de habilidade e leveza enquanto dançavam. Um casal era de mais idade. Apesar de não possuir belas pernas, fazia-me bem ver aquela senhora abrindo-as e as fazendo correr pelo chão de tábuas, como se fosse um compasso. A outra era bela, tinha um vestido vermelho. Seu par levava entre os lábios uma rosa branca, a qual ele fazia repousar entre seus seios ao final do espetáculo. Enquanto assistia ao solitário espetáculo dos dois casais, não reparei na mulher que sentara ao meu lado. Tinha longas unhas escarlates e usava um vestido negro de cetim, o qual sob a fosca luz do ambiente parecia refletir as poucas luzes da ribalta. Ela então se levantou e tomou o meu braço: - Vamos dançar! - Mas eu não posso... Envolveu-me num abraço. Vi que meu temor se dissolvia à medida que eu absorvia seu perfume. Sua voz, sua boca, tudo me era familiar. Quanto mais os nossos corpos avançavam pelo tablado, mais todo o resto deixava de existir. Aos poucos iam se desfazendo as paredes do ambiente. Ainda tive tempo de olhar o garçom que me servira há pouco acenando para mim como em despedida. A simpática senhora das pernas de compasso me sorria enquanto seu companheiro a levava rumo à esquina de uma rua que não parecia ter fim. O outro casal tomou a direção oposta, e vi que a rosa branca murchara entre os seios da dançarina, mas ela não se importava. A lua como uma grande hóstia dourada consagrada. Nossos corpos se eternizaram enquanto tocava a música. E ela tocou para sempre. E seu nome era Luísa. |