ETERNIDADE E MEIA
Bárbara Helena
 

’’Et je revais longues annees, longue indolence
Ou rien ne se passe mais ou rien ne s'oublie
J'allais sereine et sans connaitre
Le moindre feu d'une absence...”
( j’attendais)

Toda tarde, Mimi cismava de cantar aquela música.

“nosso amor que eu não esqueço ,e que teve seu começo... numa festa de são João”

Ela amava os blues, mas gostava de Noel, lembrança de alguma paixão caminhoneira. Ouvia do trailer sua voz de contralto e perdia a respiração, afogada em lembranças.

Vinha do passado o perfume do jasmineiro, na vila do Catete onde eu morei, há tantos anos atrás. Adolescendo magra e morena, olhos perdidos no depois, esquecida de mim.

“morre hoje sem foguete, sem retrato e sem bilhete... sem luar e sem violão...”

Era de novo ontem e estávamos os dois parados em frente ao casarão amarelo, conversando sob a luz do lampião na porta. O jasmineiro floria, o calor sufocava e uma brisa vinha de não sei onde, talvez da minha respiração ofegante. Guardava aquele amor secreto no cofre da insegurança. Ele falava sem parar, contava algo que esqueci, ou nem prestei atenção, só sentia o cheiro de jasmim e a vontade de morrer em seus braços morenos.

Quando a luz se apagou, inesperadamente, milhões de estrelas caíram sobre nós. Ao longe, no radio da vizinha, uma voz feminina cantava Noel:

“junto de você me calo, tudo penso, nada falo, tenho medo de chorar...”

O perfume das flores se tornou mais forte e a música mais presente. Ele parou de falar, como se a escuridão estrelada merecesse um respeito reverente. Ficamos calados, um diante do outro, sombras silenciosas. De repente se curvou, me pegou pela cintura, apertou contra ele meus seios doloridos de desejo e colou a boca na minha. Desmaiei mil vezes naquela hora. Logo a luz se acendeu e ficamos envergonhados, sobrando, olhos baixos de culpa. Ele disse apenas:

“Desculpe...”

Virou as costas e sumiu na escuridão da vila.

Fiquei parada, sentindo o perfume das flores, o calor e a música que acabava:

“e que eu arruinei sua vida...que eu não mereço a comida ,que você pagou pra mim..”

Era sempre assim. Todas as tardes, enquanto eu morria de lembrar apoiada no trailer.

Um dia, não agüentei e contei pra Mimi. A eterna romântica adorou minha história de amor.

“Você nunca mais soube dele?”

“Nunca. Logo depois, nos mudamos para o Riachuelo e perdi o Martino de vista.“

“Mas tem que procurar o cara, acabar com esta consumição do passado, quem sabe não é o homem da sua vida?”

Mimi acreditava que os homens da nossa vida estavam em algum lugar à espera de serem colhidos. Sorri e acariciei sua mão áspera. Uma estrela do blues, eterna adolescente.

Ela não desistiu. De alguma forma, descobriu o novo endereço e o telefone do Martino. A principal ocupação de Mimi, longe da música - além de pintar as unhas de cores variadas, ler romances água com açúcar e se apaixonar - era fabricar pares que nunca davam certo.

“Ele é dono de uma loja de móveis no Catete – Eduardo Martino Cama e Mesa. Foi fácil descobrir com a telefonista. Menina legal, ficamos amigas, acho que tem uma queda pelo Barão, acredita?”

Não acreditei, o Barão , nosso produtor em Niterói, era feio e sem graça, mas não importava, ela descobrira o Martino e estávamos indo para o Rio, cantar numa boate da Lapa, coisa fina, platéia de conhecedores, nada de caminhoneiros amantes de pagode. A vida, às vezes, é perfeita. Sorri para o céu azul e abracei Mimi. Querida. Verão de novo, jasmins floriam e sua voz rouca me provocava:

“Nunca mais quero seu beijo, mas meu último desejo você não pode negar...”

Depois de muita insistência, resolvi telefonar, do quarto do nosso hotel, no centro.

Ao meu lado, ela vigiava minha indecisão.

“Anda logo, deixa que eu ligo... mas fala com o cara“

Tremendo, o coração aos pulos, peguei o telefone:

“Alô?”

A mesma voz. Os jasmins floriam.

“Martino?”

“É ele” – acento profissional, esperava uma cliente.

“Sou uma amiga de muitos anos atrás, filha da Dona Mocinha, a costureira, morei na mesma vila que você em Bento Ribeiro, no Catete, lembra?”

Ficou calado alguns minutos, pensei que ia morrer. E se ele não lembrasse? – os jasmins murcharam.

“Lembro sim... Dona Mocinha... como vai sua mãe? - a voz continuava distante, algo impaciente.”

“Morreu há dez anos” – novo silêncio constrangido.

“Sinto muito“

Atravessei aquele mar com barco frágil, atropelando as palavras.

“Pois é, eu sou de uma banda de blues, estou no Rio, vamos fazer uma apresentação na Lapa, hoje, queria te convidar...”

“Banda de blues?” - a voz surpresa, não muito interessada – “bacana, me passa o endereço que, se der, a gente passa lá pra te ver... legal falar com você depois de tanto tempo...“o timbre desmentia as palavras gentis, queria se livrar de mim, daquela intrusa do passado, tinha fregueses para atender.

Dei o endereço, me despedi morta de tudo, ele ofereceu a loja se precisasse de algum móvel – usado, mas em bom estado.

Mimi olhou pra mim, consternada.

“O que ele disse, o desgraçado?”

“Se puder a gente passa lá...“

“a gente? Será casado?“

Não importava, nada importava. Os jasmins não floriam mais, o inverno chegara mais cedo e Mimi nunca mais cantaria Último Desejo.

O show na Lapa foi emocionante, me entreguei como nunca. Escolhi J'attendais, da Celine Dion para fazer o solo. Combinava com a platéia. O arranjo de Billie, com acompanhamento de guitarra e sax, foi um dos mais lindos da sua vida. Ele parecia entender, me acarinhar.

Eu esperava.

“Et j'ecoutais longtemps couler l'eau des fontaines
Et j'ecoutais le vent chanter infiniment
Vagues de quietude et de paix...”

Escutava correr a água das fontes, e o vento cantar infinitamente, vagas de quietude e paz. Minha voz percorria as notas límpidas, me libertando do presente. Martino não veio, claro. Martino não existia mais. Apenas na lembrança ainda floriam jasmins, a brisa me arrebatava e um beijo interminável ponteava a música.

’’D'aussi loin que je me souvienne
L'enfance est un immense ocean”

De tão distante quanto me lembro, a infância é um imenso oceano.

O passado. Eternidade e meia.

 

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