DE CORPO E COPOS
Rutinaldo Miranda B. Junior
 

Dor-de-cabeça.Meu cérebro dói,pulsa.Gosto de isopor na boca.Quero voltar a dormir.Não consigo.Minha garganta está seca.Quando giro o pescoço,dói tu-do.Dói a testa,dói a nuca.Sinto o corpo quebrado.Que ressaca horrível!Aliás,todas as minhas ressacas são horríveis.Puro sofrimento.Quero voltar no tempo.

Ah,seu eu tivesse uma máquina do tempo!Ali,na mesa do bar,pediria ao gar-çom para trocar o uísque por um copo de leite.Claro que tudo isso é mentira.

Sinceramente,o que me leva ao bar é o álcool.A alegria fácil do álcool.E outra coisa.Mulheres.

Ela não acordou.Está de costas pra mim.Egoísta.Pegou o cobertor só pra ela e me deixou pelado nesse frio.Como é mesmo o seu nome?É o nome daquela cerveja.Como é mesmo?Deixa eu ver....Boêmia,isso!Só é trocar o b pelo n. Noêmia.Lembrei.Que tática maravilhosa!Nunca mais esqueço ou troco o no-me de mulher alguma.Quando conhecer outras,vou associoar o nome a qual-quer coisa.Joana com pijama.Celeste com Budapeste.

Noêmia.Belo nome.Belos cabelos castanhos.Castanhos claros.Vão até omeio das costas.Ai,minha cabeça!Preciso de água.Pensando bem,vou ficar umpouco na cama.Não quero que ela acorde.Ainda é cedo.Se ela acordar,teremosque conversar.Eu não estou a fim de papo nenhum .Quando estou de ressaca emexo a boca,meus olhos doem.Quando estou de ressaca sou um chato.O mun-do inteiro me aborrece.

Fico admirando os cabelos.São bonitos,são finos.Ela tem um cheiro bom.Acarne parece macia.O corpo,quente.Quero cheirar esses cabelos.Com cuidado, aproximo o nariz.Roço nos fios.É um cheiro doce,de castanha.Ela dorme de lado.Descubro o ombro.Ela se retorce um pouco.Continua dormindo.Dormeum sono profundo.Cheiro sua pele.Pele branca,alva.Tem o mesmo cheiro de castanha.Penso que meu corpo também deve estar cheirando a castanha.

Há noites que vou ao bar só pra encher a cara.Há noites que saio cheio de segundas intenções.São as noites de caça.Noites em que procuro mulher.Sexo. Noites em que satisfaço meu instinto.Sento na mesa e nem olho pros lados.Prafalar a verdade,olho sim.Mas,nos dias de bebedeira,todas as pessoas são repul-sivas.No meu dia de álcool,invariavelmente aos sábados,só quero beber.Bebo pesado.Bebo pra me afogar.Bebo pra me danar.Se alguém não gostar,que ex-ploda.Não devo satisfação a ninguém.Sou vacinado,pago meus impostos.Sequero encher a cara,encho.Graças a Deus,não tenho filhos.Não tenho umamulher com aliança no dedo pra me aporrinhar a vida.Minha família era o Damião,meu gato.Que,há três meses,atirei pela janela.Acho que foi o melhor para nós dois.O Damião deve ter compreendido.

Ontem foi sábado.Saí de noite sem tomar banho.Penso.Pra que tomar ba-nho,pra que fazer a barba?Costumo chegar em estado lastimável.O táxi me deixando na porta do edifício.O porteiro me arrastando até o apartamento.Não faz isso por piedade.Compro a piedade do porteiro por cem reais todo o mês.

Dessa forma,ele me bota no ombro,me carrega sorridente.

Para me embriagar,costumo fazer uma peregrinação.Saio no começo da noi-te.Ando pela cidade com as mãos no bolso.Procurando o bar que me agrade.

Quando quero beber,o melhor bar é o mais vazio.Ontem,entrei num bar estra-nho.Um barzinho pequenho de paredes de tijolo envernizadas.No final de uma rua sem saída.Não tinha ninguém e entrei.Um japonêszinho de cavanhaque ra-

lo e jeito afeminado saiu do balcão.Pedi uísque.Ele me olhou desconfiado.Co-mo eu fosse um alcoólatra liso.Tirei a carteira do bolso a pretexto de achar um cartão telefônico.Abri bem pra ele ver as notas cinqüenta reais.Mostrei ao sujeito que era um alcoólatra endinheirado.Foi o bastante para acontecer o mi-lagre.Passou a me tratar como um príncipe.Mundinho leviano esse!

A melhor dose de uísque é a terceira.Ela me faz ficar leve.Eu já estava leve há muito tempo.Nem o bar estava mais vazio.Veio chegando gente.Todos jo-vens.Piercings no nariz e na língua.Alguns cabelos pintados de cores discre-tas.Vermelho,azul ou verde.Deprimente.Só eu era o único quarentão no recin-to.Barulho de vozes no meu ouvido.Fiquei na minha,com o meu uísque,quan-do sentou um garota na minha frente.Olhei bem.Vinte anos no máximo.Cabe-los castanhos e uma garrafa pequena de cerveja na mão.Sentou e ficou me olhando.Me encarando.Suspeitei que pretendia me tirar o sarro.Perguntei o que queria.Ela disse que não queria nada.Apenas ficar na mesa comigo.Tudo bem,concordei.Que ficasse ali me olhando,não me incomodava.Só não podia me tirar o uísque.Ela riu.Aproveitei para saber seu nome.Falou.Achei diferen-te.Difícil de gravar.Com ar professoral,me mostrou o rótulo da cerveja.Disse que,se eu quisesse lembrar dela,bastava trocar o b pelo n.Interessante.Menina esperta aquela.Daí em diante,começou a me encher de perguntas.Respondi a todas.Com tanta paciência que me surpreendi.Falei que era arquito,que mora-va sozinho,até que já tive um gato.Mas que o bicho,coitado,caiu da janela.Ela não acreditou na história.Gatos não caem de janelas.Contei que o meu era tão míope que caiu.Ela fingiu que acreditou.

Lembro que saímos do bar um tanto conscientes.Ela me mostrou sua mo-to.Bêbado não dá a mínima pra morte.Subi na garupa.Saímos ziguezague-ando pela madruga.Derrubamos até lata de lixo.Milagrosamente chegamos ao meu prédio.O porteiro lancou uns olhos esbugalhados.Guardamos a mo-to.Subimos,transamos e eu não me lembro muito bem como aconteceu.Sei que acordei com essa dor-de-cabeça que me mata.Ela,ressona ao meu lado.Espero que continue dormindo.Se acordar,nem sei o que dizer.

 
 

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