UMA CANÇÃO DE AMOR
E UM PIERROT DESESPERADO |
Ele
voltou Mal abri o portão, às sete e alguma coisa da manhã, luzes da casa acesas por causa da escuridão da chuva, fui saudado pela minha digníssima consorte com esse hino imortal dos biriteiros. Apesar da ironia contida, seria pior se fosse uma canção de Reginaldo Rossi, o rei dos cornos conformados. Senti-me o próprio Odisseu depois de posto à prova por Penélope e saber de sua sincera fidelidade. Nessa velocidade virtual, todo cuidado é pouco. Há muitos punheteiros cibernéticos voando por aí, feito morcegos em busca de sangue. Vá lá que a mulher goste de uma gozada virtual... Sem perder o rebolado, devolvi: Eu
cheguei em frente ao portão Voltei porque aqui é o único lugar que gato, além de ter nome de gente "Mendonça" late feito cachorro de Roberto Carlos. Ao menos na minha interpretação musical, que não foi lá das melhores. Também, depois de duas semanas atrás do trio elétrico, somente milagre. Minha cara-metade, investida da autoridade de quem é casada na igreja, no civil e na polícia, vendo a minha disposição e alegria de quem brincou a terça-feira gorda do carnaval pela televisão, apesar de estar na terra dos abadás e dos afoxés, capitulou arrependida tal qual Maria Madalena, que não é a minha vizinha, gostosa da cabeça ao dedão do pé. Harmonizou-se musicalmente, humilde, contrita: Entra,
meu amor, fica à vontade O apelo era irresistível. Minha cadeira estaria sempre vazia, à minha espera. Só não sei se levaria os vinte anos de Penélope. Como disse antes, com tanto masturbador virtual por aí, é bom não dormir de touca. Tinha que me justificar. E depressa, antes que ela saísse para o trabalho pensando que levei um fora da Astrid, no camarote da Daniela, não a Mercury, que este o vento levou, mas a outra, uma sirigaita do Campo Grande. Cantarolei: Eu
sou o que me pede, coração, Tiro e queda. Versos divinos, Caio Sílvio! Obrigado, Graco! Funcionou melhor do que um convite para a Disneylândia. Ou um fim de semana em Fernando de Noronha. Ela sabia que eu não iria a nenhum dos dois. Olhei para a mesa do computador. Um lacre disfarçado continuava do mesmo jeito que deixei. Ela não se conectou. Os punheteiros da Internet sifu! A nega é minha, ninguém tasca, eu vi primeiro! Deixou cair a toalha e mostrou seus lindos seios. Talvez os únicos sem silicone nesses tempos modernos. Édipo e meu complexo: me amarro em um seio, principalmente sem silicone. Seios polimerizados podem vazar e causar úlcera no estômago do mamador. Ou algo pior: câncer do fígado. Depois do enterro, uma manchete nos jornais nada honrosa para o defunto em questão: "Mamou e se finou". E a caricatura de um peito vazando silicone sobre um caixão. Tá doido, sô! Comigo não, violão! Ela abriu a porta do quarto e apelou com toda sensualidade de fêmea que Deus lhe deu. Tem tudo pra ser uma mulher baiana, com os requebros e remelexos. Toda menina baiana tem o dengo que Deus lhe deu, diz o poeta e ministro. Ela adora me chamar de "painho". Só quem é baiano sabe o efeito que isso faz. Com os olhos verdes de gata no cio, lançou o irresistível convite: Vou
te caçar na cama, sem segredo O momento exigia raciocínio rápido, embora a porta se fechasse lentamente. Era o guerreiro voltando para casa, cansado da longa caçada pelos bailes da vida. Assim como Zeus se manifestou com um trovão para Odisseu, raios e trovões rasgavam o ar da maltratada Marajacap. Seriam augúrios dos deuses? Quiçás. No repouso do guerreiro, Roberto Carlos azeitou a minha voz: No
seu corpo é que encontro Era o supra-sumo da carícia, arrepios extremados, o kama-sutra em libações infinitas, o sagrado, o profano, o mundano, diapasão da alma em cântico. Ela: Faz,
que desse jeito só você sabe fazer Bendito Michael Sullivan! Só ele para inspirar os amantes em uma manhã tenebrosa. Chovendo às cântaras lá fora e aqui dentro nossos corpos mais molhados do que a relva inundada; trovejando lá fora e nossa pele arrepiada, soltando raios e relâmpagos. De repente um trovão forte, estremecendo a porta. Seria um raio invadindo a casa? Outro trovão mais forte ainda. Não! Espere! Não, não fora um trovão! Trovão não chora. Era Vinícius, nosso pequenino, chorando, ameaçando colocar a porta abaixo, com medo da trovoada. A chama se apagou feito fogo de palha submetido a ducha de água fria. Felizes são os cyber-punheteiros, que não sofrem esta interrupção brusca nem mesmo quando há blecaute. Precavidos, usam "no breaks" pra hora e meia de falta de energia elétrica, tempo suficiente para descascar umas dez bananas verdes. Outra "Chama" reacendeu na voz melosa da mãe. Bendita são as mães que sabem cantar quando o mundo se inflama em agonia desesperada de quem quer amar! Sou
das canções Sem mais nada a fazer, e não ficando bom para ambas as partes, vesti minha roupa de super-herói, abri a porta, dei um beijo de chegada em Vinícius, fui à cozinha, enchi um copo de gelo e whisky, voltei à sala, sentei-me no sofá, peguei o controle remoto do som, sintonizei em uma rádio qualquer e ouvi Roberto Carlos vindo dos sonofletores: Quando
as crianças saírem de férias |