UM PRONOME, UM VERBO, OUTRO PRONOME
Luís Augusto Marcelino
 

Acordei decidida. Isto pode parecer algo comum, mas tenho que declarar que não é. Nunca fui uma pessoa capaz de tomar uma decisão e levá-la ao pé da letra. Na verdade, sempre foi ao contrário. Demorei a escolher os rumos da minha vida. E talvez por isso é que, mesmo depois de tanto tempo, jamais consegui declarar o que tinha que ser dito em alto e bom tom à Aline: EU AMO VOCÊ! Apenas três palavras. Pura e simplesmente três palavras: um pronome, um verbo, outro pronome.

Conhecemo-nos do nada. Parece que as grandes paixões, assim como o universo, surgiram do nada. De repente vem uma explosão do além, um descontrole daquilo que parecia suave e harmônico e altera as condições estáveis. Só que não é minha intenção falar como conheci Aline. Confesso que não sei ao certo qual é a minha intenção. Minha capacidade de narrar aquela noite de setembro se restringe às reminiscências daquele dia, que pipocam constantemente na minha cabeça. Pura e simplesmente isso, não vou me atrever a dar um passo maior do que as pernas. Não vou me aventurar em caminhos que para mim são absolutamente absurdos.

Nosso cérebro "digo o cérebro dos humanos" é incapaz de comandar tudo ao mesmo tempo. A máquina não é perfeita. Digo isso porque, se a afirmação fosse contrária, era para dominarmos nossos medos e receios. Era para jogarmos para o Cafundó do Judas nossas limitações, vertigens e vergonhas. Mas não é isso que acontece.

- Topas um chope no Alemão hoje à noite?

- Oito horas?... - Aline sugeriu.

Não era preciso sequer combinarmos. O convite era desnecessário. Todas as quintas-feiras nos encontrávamos no Alemão. Era tão sagrado como as Sextas-feiras Santas, o Dia das Mães e o Natal. Porém, como amanheci diferente de outros dias, formalizei nosso encontro. E imaginei nossa chegada ao boteco, quase simultânea, simétrica. Sentaríamos na mesma mesa, pediríamos a mesma marca de chope, na mesma temperatura, nos mesmos copos - taças de formato elegante, mas com manchas de digitais encruadas nelas. Também ouviríamos as mesmas músicas, cantadas pela suave voz do Edmundo, conhecido no circo por Ed Ramos, um nome artístico de gosto duvidoso, mas que nos proporcionava o prazer da boa música.

"Entre nós dois, não cabe mais nenhum segredo
Além do que já combinamos
No vão das coisas que a gente disse
Não cabe mais sermos somente amigos
E quando falo que eu já nem quero
A frase feita pelo avesso veio na contramão
E quando finjo que eu esqueço
É que eu não esqueci, nada...
E cada vez que eu fujo eu me aproximo mais
E te perder assim de vista é ruim demais
E é por isso que atravesso o teu futuro
E faço das lembranças um lugar seguro
Não é que eu queira reviver nenhum passado
E revirar o sentimento, revirado
Mas toda vez que eu procuro uma saída
Acabo entrando sem querer na sua vida..."

Eu teria de ouvir Aline reclamar do namorado. Rafael era um sujeito lindo e rico. Um páreo difícil, devo confessar. E, apesar do ódio que sentia dentro de mim, tenho que admitir que era um sujeito inteligente e agradável. Ele também não gostava muito de mim, não suportava dividir a namorada comigo. Mas Aline nunca abriu mão da minha companhia. Chegamos a viajar juntos os três, contra a vontade do Lord do Sumaré - alcunha que lhe dei. Aline ria, porém não o deixava.

Enfim, tudo naquela noite poderia parecer absolutamente normal e repetitivo. O que devia mudar era a frase de três palavras que eu deveria pronunciar. Ensaiei a tarde inteira, em várias versões. Podia ser melosa, atrevida, insinuante, debochada, surpreendente, melancólica... qualquer uma das entonações estavam na ponta da minha língua. Era só pô-la da boca pra fora.

- Oi, amor!

Aline chegou precisamente às 20:10. Vestia uma saia jeans nem tão curta nem tão comprida. A saia não tinha barra. No lugar da barra, fiapos de tecido claro que realçavam sua morenice construída ao longo das incessantes sessões de praia no litoral. Seus cabelos "genuinamente pretos e lisos" dançavam com o vento refrescante que aliviava um pouco o calor insuportável que imperava naquela noite. Ed Ramos já tinha tocado "nossa música". Ela abriu seu sorriso doce, abraçou-me, beijou meu rosto enrubescido e sentou.

Conversamos o de sempre. Muitas vezes tentei desviar o assunto, mas caíamos na mesma ladainha de sempre: trabalho, faculdade e Rafael.

- Tô tão infeliz, amor!.... - disse-me, resignada.

Toda vez que ela me chamava de amor, embora eu suspeitasse do real significado, sentia uma flechada acertar meu peito. Sentia calafrios, meu estômago revirava e ficava gélido, minhas pernas bambeavam e o coração... bem, o coração... parecia a bateria de uma escola de samba.

- Mas, mesmo assim, Amanda... vou me casar com o Rafa. E você vai ser minha madrinha, né?

Engoli as palavras. Dei um sorriso chocho, consenti.

Pedimos mais dois chopes. Depois mais dois. Aline ficou bêbada. Pediu um abraço. Chorou. Nossos corpos, enfim, se encontraram. Dentro de mim um alvoroço colossal. Eu não sabia se vomitava, se me atirava em direção aos lábios dela, se me fazia de indiferente, ou de feliz ou qualquer outra coisa. Foi um Deus nos acuda dentro de mim.

- Claro que serei sua madrinha, querida!... - declarei.

Brindamos. E nossos copos se tocaram. Nossos copos se tocaram....

 
 

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