EM CINZAS
José Luís Nóbrega
 
 

Dona Maricota era o que se podia chamar de uma santa mulher. Casada há mais de trinta anos com um boêmio inveterado, no Carnaval, ele se perdia de vez.

Como fazia em todas as longas noites em que passava à espera do marido, de camisola, com um xalezinho de tricô sobre os ombros encolhidos, touca de rendinha cobrindo a cabeça e orelhas, de meias e chinelo, se aconchegou na pequena poltrona, aguardando a chegada de Armando, depois da folia na última noite de Carnaval. Todos os anos, na última noite, ele se acabava, e naquele ano, não seria diferente.

- Dona Maricota! Dona Maricota! - alguém a chamava no portão.

O sol da manhã já adentrava a sala, e ao acordar com os gritos no portão, Dona Maricota procurou os óculos sobre a mesinha de centro, e ainda de camisola, foi até o portão para ver quem a chamava.

Lá, o marido Armando (meio "desarmando") era sustentado, pelos braços, por dois amigos de bebedeira.

- Que bonito, hein, Armando?! - disse a mulher ainda esfregando os olhos, já com o sol a esquentar-lhe os ombros cobertos pelo xale de tricô.

- Dona Maricota, não adianta dizer nada. Olha o estado do homem, dona. Podemos levá-lo pra dentro? - disse um dos homens, que ao terminar a frase soltou um estridente soluço, fazendo a cabeça do companheiro que estava sendo carregado pender para o outro lado.

- Botem esse traste pra dentro - anda! - antes que os vizinhos vejam ele nesse estado. Que vergonha, hein Armandão?!

Armando não esboçou qualquer reação. Carregado pelos amigos, foi jogado ao sofá como um saco de batatas, fazendo brotar dele confetes que se espalharam pelo chão da sala.

Dona Maricota até pensou em oferecer um café aos comparsas do marido, mas achou melhor mandá-los logo embora. O cheiro de álcool era insuportável naquela pequena sala.

Foi até o portão se despedir dos boêmios que ainda tentavam se explicar, dizendo que no próximo Carnaval controlariam a bebedeira do incontrolável "Armandinho". Com a paciência de sempre, apenas ouviu as lamurias dos cambaleantes. Depois da despedida, uma inusitada surpresa. A porta da sala fora fechada pelo embriagado Armando, deixando a pobre mulher pra fora.

Murros na porta. Gritos e palmas na tentativa de acordar o bebum que trancara a porta, enquanto ela se desvencilhava de dois chatos ébrios.

Cansada, sem obter êxito em acordar aquele ser que roncava na sala, fazendo tremer as paredes, adormeceu encostada na porta. Já passava das dez quando ouviu o barulho do trinco sendo aberto, surgindo então a pessoa do marido todo despenteado.

- Que é isso mulher?! Dormiu na rua? Que noitada a senhora deve ter tido, hein? Vê se no próximo ano, pelo menos, melhora essa fantasia! Cê tá brega pra caramba com essa camisola, esse xale... E essa touca, entã!...

A mulher entra, olha os confetes jogados pelo chão, não diz uma palavra e vai pra cozinha preparar o almoço, enquanto ele vai pro boteco da esquina rebater a ressaca com uma gelada, afinal, o Carnaval já havia terminado, mas a quarta-feira de cinzas... estava só... começando...

 
 

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