NO LIMIAR DAS SOMBRAS
(parte dois)
Beto Muniz
 
 

- Jeromo! Você me matou Jeromo!

O menino estremece. A mãe não sabe dos medos que ainda dançam na mente do filho e lhe causam estes tremores, por isso acha que apertou demais o pano em torno do machucado, mais sujo que feio. Já cuidou de cortes piores nos corpos magros dos filhos, estes nos pés demoraram mais que os outros para curar por conta das estripulias vindouras. Ela conhece bem o filho do meio que tem, sabe que ele fica quieto um ou dois dias e depois sai pelo terreiro, pelo sítio, pelos matos e arrebenta com a cicatrização várias vezes antes dela se fechar de vez. Mas cuida com zelo para estancar o sangue, deve ter estourado um vaso. Ela vai ficar de olho e se precisar bota o menino na carroça do Chico e manda o Jeromo levar pra farmácia da vila. Mais essa! Moleque teimoso, tivesse escutado ela não estaria agora com esse beiço aberto no tampo do dedão.

A mãe bem que falou pro filho não ir com o pai, estava com intuição, uma visagem estranha que não podia ser coisa boa. Desde menina ela percebe coisas antes delas acontecerem, sempre que os pelos do braço se eriçam e ficam parecendo uns espetos, todos apontando para cima, ela sabe que tem alma penando por perto. Benze, faz o sinal da cruz e reza da boca pra dentro engolindo os esconjuros porque não tem medo, já se acostumou com esses arrepios. Acostumou também em saber notícia ruim antes delas acontecerem. Já esperava o seu Jeromo voltar trazendo notícia ruim, só não esperava o marido com a língua de fora de tanto desespero e o filho na cacunda com o pé estropiado. Ainda bem que é coisa que se dá jeito. Nem vale a pena aporrinhar o marido querendo saber onde e como o filho se machucou. Sabe que o marido é todo acanhado, duro, sem jeito para conversação e quando se fecha num canto o melhor é deixar passar um tempo antes de querer saber o que lhe vai pela alma. Apesar do jeitão, Jeromo tem um coração de ouro camuflado dentro do corpanzil forte, da carranca ameaçadora. O marido impõe respeito só olhando, olha feio e pronto! Os filhos se calam como se tivessem nascido mudos. Ficam durinhos também, todos eles. Uma beleza a fila de filhos parecendo estátuas. Jeromo impõe respeito sem precisar falar um 'ai'. Bem diferente dela que se quiser impor respeito precisa dispor duma vara lascando o lombo dos filhos. Vira e mexe tem um filho fazendo carreira para salvar o couro, só os graúdos porque os miúdos, coitadinhos, ficam para apanhar. A mãe tem dó de baixar a vara nos miudinhos, mas tem hora que precisa açoitar as pernas deles se quiser que eles se endireitem, que sejam adultos de bem. Bater na cabeça nem pensar! Aprendeu com sua mãe que na cabeça de criança não se bate. Se precisar corrigir malcriação a vara deixa vergão nas pernas dos miúdos e lasca o lombo dos graúdos, mas a cabeça não leva pancada nem de raspão. O gostoso mesmo é pegar de surpresa no ato da arte e lascar um tapão bem dado na bunda do arteiro. Isso até dá certo prazer. Mas tapa assim só funciona para corrigir os miudinhos que nos graúdos o tapão pega onde tiver mais fácil acertar, e tapa em qualquer lugar não dá o mesmo gosto que tapão nas carnes traseiras. Também não bate na cara dos filhos que tapa na cara só cria revolta, sentimento ruim nos pensamentos. Tapa na cara é para gente sem-vergonha e isso os filhos não são de jeito nenhum, os filhos maiores são é abusados. Aprontam o tempo todo, mas se for ver bem é sempre coisa pequena, infração de criança, nada que denuncie desvio de caráter. Só a mais velha, a Irene, é que tem dado para contar lorota. Está toda enrabichada de namoricos com o Zé Florêncio e deu para mentir. Também é coisa pouca, menina-moça conhecendo as coisas do mundo, do coração, diz que vai ali e vai noutro lugar; diz que foi só levar o leite pra Tia Balbina e na verdade aproveitou para deixar bilhetinho de amor para a prima entregar pro moço. A Mãe andou conversando com Irene, falando de como as coisas devem funcionar entre um moço e uma moça; que moça de família não deve ficar sozinha por aí se encostando em moço - mesmo sendo rapaz conhecido da família, mesmo que seja moço de bem. O certo é o rapaz falar com o pai da moça antes de começar com histórias ou periga a infeliz fica falada. Periga parar na boca do povo. É certo que nem tem tanta gente assim nos arredores, mas mesmo nesses ermos sempre tem alguém disposto a cuidar mais bem cuidado da vida alheia que da própria vida. A mãe falou tudo que sabia dizer e mesmo assim dorme com um olho aberto, manda o Bira, o segundo mais velho dos meninos, ficar grudado na irmã. Ele é irmão e vai saber cuidar da moça. Proteger ela de algum boato. O marido mata se pega Irene com essa história de namoro. Mata a filha e o moço que se atrever! Será que o Jeromo mataria mesmo? Tal dúvida desvia o rumo das divagações que já desembocavam num longínquo casamento da filha. A mulher vai de divagação em divagação até se pegar pensando em defuntos, velórios, no último filho que enterrou, pobrezinho, meningite veio dois meses atrás e levou em três dias. Divaga lembrando do corpinho imóvel e enfeitado de flores, da benzedeira encomendando a alma do anjinho, dos homens bebendo o corpo. Aliás, estava passando da hora de pagar os trabalhos da Dona Zenaide, a benzedeira. Além de comandar a ladainha também ajudou a preparar o corpo. Lavou, preparou e vestiu o corpo, botou as flores no caixão e na madrugada, entre uma reza e outra, lavou os copos cheirando cachaça. Pra semana que entra o Jeromo tira a leitoa da engorda e sangra. Em paga pelos préstimos vai levar a suã ou um dos quartos pra Dona Zenaide e agradece. Isso, não pode esquecer. Esqueceu foi o pé do filho enfaixado com retalhos dum lençol antigo. Recupera a noção, afasta os pensamentos tolos e antes que comece a pensar na época em que o lençol era novo, destrói as imagens na mente ralhando consigo mesma pela distração. Ela devia era ficar de olho no pé do filho, vendo se o sangue estanca. Pelo menos esse está vivo, ferido porém inteiro. Deus o guarde! Guarde também Jeromo que uma hora terá de explicar como deixou o filho se machucar desse jeito. Isso se o marido não for o culpado, diacho de homem desajeitado! Bem pode ter machucado o filho sem querer e agora está aí, amuado feito cachorro que filou a lingüiça do almoço de cima da mesa.

O menino sabe que não foi o pai quem machucou seu pé. Foi um toco, uma raiz, nem deu tempo de ver. O menino não viu nem sentiu a topada, só depois, quando sentiu a dor é que viu o tampo do dedo saltado e o sangue escorrendo para a sola do pé. Sentiu a terra grudando no sangue empapando a sola do pé com lama vermelha como quando chove e o menino sai pisando o barro. Uma vez, só uma, choveu tanto que o terreiro virou uma grande poça de água barrenta. No dia seguinte ele e os irmãos brincaram de pisar a lama e cada qual saiu com barro marcando os tornozelos, o meio das canelas ou os joelhos. Os miúdos fingiram calçar botas, os médios meia-bota e os graúdos botinas feitas de barros. A mãe ralhou, deu cascudo e lavou cada pé até ficarem todos limpos, prontos para se sujarem novamente no dia seguinte. Nenhum dos quatro irmãos e das três irmãs tem por costume o uso de sapatos. Só usam quando vão à casa da avó, mãe da mãe, professora aposentada. A vó tem esclarecimentos e faz questão que os netos se calcem, deu par de sapatos para todos, mas eles não gostam de usar e economizam o calçado para quando vão visitá-la. A mãe também tem uns sapatos bonitos, de passeio, mas em casa usa precatas. Só o pai tem por costume calçar um par de botinas no dia-a-dia, o sapato que fica guardado no quarto ele só usa em dias de festa, de viajar, de passeio na casa da sogra. Os filhos andam descalços para todo quanto é canto dessa terra onde moram. Correm atrás de calango, nadam pelados no riacho, comem com a mão e sempre dizem a verdade para a mãe e pro pai. Quando a mãe ralha com o pai culpando-o pelo filho estar com o pé arreganhado, o menino fala do acontecido que é pra mãe não culpar o pai pela unha do dedão estar perdida em algum lugar lá na trilha. Porém, ele não tem a mania de ficar falando, ninguém na família, sejam graúdos, médios ou miúdos têm jeito com a conversa explicadinha, então o menino, que é dos médios, conta tudo numa frase só:

- O pai atirou no macaco e ele gritou o nome do pai.

(continua na próxima atualização)

 
 

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