A ESCOVA DE DENTES
Vera do Val
 
 

A mulher suspirou. Estava exausta! Também pudera, tinha que se desdobrar em vinte.... Acho que pensam que sou a Mulher Maravilha... elocubrou, com seus botões, enquanto procurava nas prateleiras do supermercado a marca predileta do sucrilho do filho mais novo. Os pés doíam metidos naqueles escarpins altos desde a manhã, a cabeça doía ainda presa às últimas manobras do chefe mal humorado. O dia tinha começado cedo, ainda escuro, quando o marido, como sempre, acordara com o pé esquerdo. .... Será que ele nunca vai aprender a respeitar o sono alheio? Não podia ter arrumado a maldita mala de véspera?... O infeliz ia viajar e para variar não sabia onde estavam as suas coisas. Ela, sempre ela, tinha que socorrer. Viagem suspeita aquela, mas não queria pensar nisso. Pouco se lhe dava, queria que explodisse. E a conta do banco no vermelho, já tinha mais de mês e o desgraçado não se mexia. Entrou na fila da carne, uma gorda, toda enfeitada , na sua frente quase a atropelou.... mundo miserável esse... e ainda escutou os xingos. O treino de anos a fio a fez forçar um sorriso , quase esgar, e se manteve impávida. E ainda tinha que passar na casa da Claudete para pegar a roupa lavada da semana. E não esquecer de ligar para o irmão e agüentar a lamentação dele. A mulher o tinha deixado semana passada e o pobre só fazia chorar... Família é família... tá bom ...tenho pena ... mas essa foi esperta ... deve tá numa boa. Tavinho é um filho da puta, agora chora com essa cara de santo... ela se safou... tomara que enfie a faca nele com a pensão... Imaginou a cunhada, na boa vida, bem penteada, maquiada, sem pés doendo e nem filho buzinando na orelha, quem sabe com um bonitão qualquer. Começou a rir. O açougueiro a atendeu de cara feia, mais uma maluca, e ela viu as mãos sujas dele mas não se atreveu a reclamar. Acomodou as coisas no carrinho e se dirigiu ao caixa. Outra fila, essa maior ainda. Preparou-se para a espera ... O desaforo de sempre, essa gente dona de supermercado fazendo o povo de idiota ... filas enormes e só dois caixas atendendo ...não bastassem os bancos ... O sapato apertando os dedos moídos... Não tinha esquecido nada? Será que o dinheiro dava? Não devia ter comprado aquela marca de sucrilhos, era a mais cara... Mas lembrou a cara de desagrado do filho quando via a marca mais barata. Os filhos! Pensou nos dois... Quem disse que ser mãe é o paraíso? ... Devia estar bêbado ... Ela queria era mandar pra esse idiota os dois que ela tinha. Mandaria embrulhados para presente. E torceria para que eles fossem iguaizinhos como eram com ela. Monossilábicos, mal humorados, desatentos desleixados, deseducados e mais meia dúzia de des alguma coisa. Mandaria as contas também, claro! Escola, dentista, pediatra, judô, aula de inglês etc, etc, etc. Riu sozinha outra vez. ...O cara ia aprender a não falar besteira...

Enfim sua vez, aguentou a grosseria da moça do caixa e, mancando, foi para o estacionamento. Onde estavam as malditas chaves?

Foi quando sentiu o tremor. Veio vindo das entranhas da terra como um vômito. Estatelada, ouviu os gritos, percebeu o pânico, viu o fogo, e os edifícios à sua frente começarem a ruir. A Terra explodia, e antes de se precipitar no enorme abismo ela só teve tempo de pensar... Ah que alívio !!! Só espero que aquele filho da puta não tenha esquecido de levar a escova de dentes.

 
 

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