SOMOS NÓS MESMOS
Sérgio Anauate
 
 

Abri o botão de cima da sua blusa. Um blusinha cor-de-rosa, como as de antigamente. Tecido piquet, com bordados em ponto cruz. Flores minúsculas coloridas. Meu olhar vaga por estas florzinhas. Uma me lembra do jardim de minha infância. Uma casa pequena, com um terraço de cimento na frente onde, heróico, um jasminzeiro despontava e embriagava as noites de verão com seu perfume. Outra é da cor do vestido que eu mais gostava de ver na minha professora de inglês do ginásio, com quem todas as noites do ano letivo eu sonhava e, em sua homenagem, orava ao estilo adolescente. As amarelas me trazem o sabor do carrinho de sorvete que eu tanto esperava nos finais de tarde após a lição de casa.

De repente, meu olhar sobe e encontra sua boca. Os lábios úmidos, pequenos e atrevidos. Eu sempre os gostei carnudos, mas os seus são a exceção que confirma a regra. Acompanho a curva deles de uma comissura a outra. O brilho iridescente da saliva ali deixada por sua língua errante os torna irresistíveis em sua altivez.

Desço agora para o segundo botão. São apenas três. Depois as pontas da blusa se abrem em vê. Seu umbigo está visível. Uma fenda contínua forma uma espiral irregular e irrequieta. Tento acompanhar seu contorno mas acabo sempre de volta ao mesmo ponto, nunca encontro o começo nem o fim. Um labirinto, um ninho a se perder. Enquanto me recupero da agradável tontura, o segundo botão cede fácil. Hoje você traz um sutiã. Pequeno, meia-taça como eu gosto. É rosa também e tem bordados da mesma cor. Delicado, me faz lembrar da colcha que cobria o corpo do primeiro morto que vi. Na verdade era uma morta, mãe de uma amiga por quem eu era louco. Por ambas, para ser sincero. Seu corpo, não tão jovem, mas de uma maturidade pujante, jazia sobre a mesa da sala (que costumes eram esses!) coberto pela tal colcha inesquecível.

Subo novamente, magnetizado por um respirar mais profundo, quase um suspiro. Persigo a curva do seu nariz. Este sim, do meu gosto, forte, com personalidade, impõe sua presença, leva a atenção ao centro do rosto, dá equilíbrio e originalidade. Pequenos pêlos bem claros contornam as bordas das narinas. Vejo-os entrar e sair, ao sabor de sua respiração. Assim também você está em minha vida. Entra e sai ao sabor dos meus encontros e desencontros, com você, comigo e com o mundo.

Volto-me para o último botão que, aberto, deixa a blusa escorregar para os lados, expondo seu torso magro e rijo. Toco sua pele com a ponta dos dedos, me lembro dos pêssegos que colhia em outras épocas, um leve arrepio me percorre enquanto eu percorro sua penugem, assim como a dos pêssegos. Você também se arrepia, a base de cada um daqueles pêlos translúcidos se eriça. Não sei por quê mas fui me lembrar de quando depenavam galinhas para o almoço das festas. Depois de arrancadas as penas, a pele ficava eriçada e os últimos resíduos das penas eram então ardidos pelo fogo, inundando toda a casa com um cheiro de pêlo queimado.

Subo até seus olhos. Estão semi-cerrados. Viajam por não sei que espaços. Toco de leve as sobrancelhas. Não têm um desenho muito definido, não diria que são especialmente bonitas, mas não consigo deixar de delineá-las com os dedos. Primeiro a direita, depois a esquerda. Curvas dignas, talvez um pouco finas, mas, como sempre, me hipnotizam e a ponta do indicador percorre-as sem parar, de um lado ao outro, de um lado ao outro...

Quase desfalecida, assim eu a vejo em meu colo. Seu corpo miúdo, completamente entregue. Estranha sensação, essa alternância de entrega e fuga, de chegar e sair, de estar e sumir. Assim como seu corpo freme aos meus toques hoje, meu peito soluçava por ele ontem. Lembro de minha primeira briga com você. Nunca havia brigado com ninguém, nem ao menos gritado, mas com você eu não me controlei. Foi só a primeira. Às cinco da manhã, no meio da Avenida Paulista.

Tantas idas e vindas, olho novamente para os pêlos do seu nariz, não consigo escapar deles, assim como não consigo escapar de você. A cada inspiração e expiração da vida, nos encontramos e nos afastamos, desordenados. Com o olhar caminho pelo contorno de tua íris e meu pensamento vagueia. Acho que somos nossa própria fatalidade...

 
 

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