FATALIDADE
Samuel Silva
 
 

Lembrava-se quando a decisão se solidificou em sua mente e tornou-se concreta no guichê da faculdade em que entregou os documentos da matrícula. Mais de trinta anos havia se passado desde o dia em que interrompera os estudos de direito até o dia em que formalizou o retorno ao curso, a volta às aulas para preencher o tempo ocioso que a aposentadoria por doença lhe dera. Com a doença cardíaca diagnosticada e sob monitoramento, a concordância foi geral na família, entre os amigos e mesmo o médico, seria salutar para ele ocupar-se sem estresse ou trabalho pesado, apenas ler, memorizar, entender.

Na sua idade, as fatalidades se contavam aos borbotões, gente de sua geração que esticou as canelas num piripaque da saúde e deixavam a vida pela porta subalterna dos obituários e dos avisos fúnebres resumidos de pouco custo.

E, junto com as caminhadas diárias, reentrou na faculdade como modo de se manter vivo por mais alguns anos.

Depois de alguns meses de difícil adaptação aos colegas de turma, todos jovens da mesma idade de seus filhos, acaso os tivesse, estava já bastante entrosado nas conversas de corredor entre as aulas, nos trabalhos de grupo e mesmo nas provas, em que seu ego se satisfazia fornecendo dicas e colas para os jovens inquietos com tanto a fazer que não guardavam tempo para estudar entre baladas e namoros.
No início do segundo semestre, ela chegou, transferida de outra cidade.

Dezoito anos, cabelos negros ondulados que deixou crescer longos até o meio das costas, uma pequena tatuagem de "fada" na base do pescoço, quase à nuca, que se vislumbrava ou quando ela prendia os cabelos em um coque improvisado preso por uma bic ou em algum movimento de riso. E ela ria deliciosamente, um misto de risada infantil com um acento de mulher, um tom de ambigüidade que parecia a ele de uma sensualidade extrema.

E por diversas vezes ele se pegou distraído na aula de introdução à ciência do direito pensando que não havia justiça em ele ser tão mais velho que ela, não havia direito em ela sequer notar-lhe a presença, não havia equidade entre a atração que ela exercia nele e a indiferença que ele sentia nela.

A situação foi saindo do controle, ele sonhando na madrugada com aquela jovem ninfa correndo nua pelos corredores desertos do vetusto prédio da faculdade, perseguida por um sátiro com as feições envelhecidas e um membro rígido como a espada de Têmis.

Não assistia mais às aulas, mas à ela apenas, decorando e desconstruindo aquele corpo viçosas, de carnes que intuía macias e substanciosas, sem sinal algum de flacidez ou ação da gravidade, as ancas largas, a bunda protuberante, a cintura fina, os peitos de limão galego. A boca como de uma boneca se movendo e que em sua imaginação sussurrava seu nome e dizia obscenidades.

Ela estava naquela idade em que tudo é bom, tudo é gostoso, até os cheiros, os hormônios, os dentes brancos, a língua que passeava umedecendo os lábios. Uma idade fatal, arrebatadora, que escravizava homens maduros que buscavam a vida para si, ainda que a que existia nos outros. Vida que veio dela, nos sonhos molhados, em forma de ereção e que serviu ao espanto da esposa esquecida daquelas atividades noturnas.

Um dia a mulher viajou para visitar a mãe em seu nonagésimo aniversário, ele não a acompanhou por causa das provas de final de ano. Ah, os jovens! Sempre tão despreocupados com o futuro, marcaram uma chopada de comemoração e o convidaram para auxiliar no churrasco em um sítio especialmente alugado para o evento. Ele foi. Ela foi. Ele a viu à beira da piscina, um minúsculo biquíni que mal e mal escondiam os bicos daqueles seios novos a contar estrelas e que praticamente servia apenas para não deixá-la nua, um pequeno triângulo na frente à guisa de tapa-sexo, outro nas costas, acima da bunda rígida. Ela bebera além da conta, fumara alguma maconha, reconheceu-o após meses de anonimato e tascou-lhe um beijo fogoso e brincalhão na boca.

Tirou-lhe o ar e não devolveu mais. Ele morreu fulminado por um AVC insuspeitado. Uma fatalidade, disseram todos que consolaram a jovem ninfa culpada; fatal idade, disseram os amigos e parentes dele em seu velório, ao qual a esposa não chegou a tempo.

 
 

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