FATALIDADE DIÁRIA
Mairy Sarmanho
 
 

Quase sempre eu caminho uma hora por dia, seguindo sempre o mesmo trajeto, cruzando a Teresópolis na altura do posto de gasolina e retornando pelo mesmo caminho, como se fosse guiada por uma força emocional que transforma rotina em tradição. Não gosto de mudanças. Prefiro as coisas fixas, confiáveis, onde posso prever o futuro sem ter dom algum para isso. Não tive filhos por esse motivo. São imprevisíveis: às vezes anjos mas, na maioria das vezes (apesar dos pais não o confessarem, nem sob tortura) verdadeiros demônios!

Mas, voltando à minha rotina: mudei. Tinha de comprar ração para os cães que resgatei da rua e segui outro caminho. Não fosse o carro estragado, eu jamais seguiria aquele caminho. Atravessei a avenida num ponto obscuro e me deparei com uma criança tão magra quanto a morte. Tinha a falta de esperança estampada nos olhos e, diferente dos cães que encontro em semelhante estado, nada pude fazer para auxiliá-la. Tinha pais ou coisa que o equivalha (não concordo em dar esse título aos algozes que colocam pequenos seres no mundo apenas para serem massacrados pela fome, maus-tratos e miséria) e nada havia a ser feito, a não ser lançar um olhar de compaixão por alguém subnutrido de corpo e alma.

Esse mundo é muito injusto: as pessoas comuns podem mudar o destino dos animais, mas não podem mudar os dos humanos. Não fossemos apegados às regras sociais, o correto seria tirar aquela criança dali, resgatá-la para um mundo melhor, dar-lhe a chance de comer e viver bem como deveria ser de todos. Mas se o fizesse seria presa por rapto.

Alguns passos adiante, encontrei um cãozinho em igual apuro. Peguei-o no colo e levei-o para minha casa. Dei-lhe banho, alimento e hoje ele está bem melhor, brincando, com o olhar repleto de felicidade. E a criança?

A criança ainda deve estar no mesmo lugar, apanhando, passando fome, suja, miserável, sem que ninguém se apiede dela, realmente. Algumas pessoas me criticavam por auxiliar os animais (hoje, graças à midia e campanhas educacionais isso não ocorre mais) mas nunca moveram um dedo para ajudar essas crianças sem futuro.

Aceitar a fatalidade é uma coisa ruim.

Pior ainda é afirmarmos que todos estão bem quando tantos estão mal.

Espero, um dia, que os políticos aprovem leis que realmente defendam as crianças e as pessoas comuns. Até lá, só me resta aceitar a fatalidade como fatal. Fatalmente imoral. Mas fatal!!!

 
 

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