O AMANTE SOLITÁRIO
Luís Valise
 

Havia pouco passara dos quarenta, mas ninguém dava mais que trinta e cinco. Não malhava, ao contrário, fumava, bebia, dormia tarde, comia de tudo e demais. Mesmo assim mantinha aparência invejável, sem barriga, pele fresca, ar saudável. E o humor. Bom-humor na chuva ou no sol, especialmente na lua. Os amigos invejavam, os parentes achavam que ali tinha coisa. Nem ele mesmo entendia como podia ser. Nada de gripe, resfriado, estresse, depressão, insônia. Quando muito uma leve ressaca, e olheiras que sublinhavam a melancolia expressa em seu olhar, que deixava em farrapos corações desavisados. Mas apesar disso tudo, ou talvez por isso mesmo, Filhão trazia no peito um fiapo de dor, de nostalgia, de solidão. Ninguém desconfiava, mas essa era a causa da vida louca, da busca permanente por alguém que preenchesse o vazio deixado pela idade. Os amigos foram-se casando, um a um, até que restasse apenas ele, remanescente de um bando de porra-loucas, que hoje, casados e em graus variáveis de arrependimento, invejavam suas noites alegres, sua disponibilidade, sua independência. Exatamente o que o atormentava em segredo. Não sabia por que não se casara até hoje. Tivera um sem-número de namoradas que foram ficando pelo caminho, e agora se via numa planície árida, sem uma sombra de afeto sequer.

- Você viu a loira que entrou na Cobrança? Filhão ergueu os olhos para encontrar o sorriso maroto do Jorge, que completava: - Maior filé!

Ele ainda não vira, e nem sabia que tinha gente nova na empresa. Pegou um documento qualquer, subiu um andar pela escadaria e chegou na Contabilidade. Atravessou o andar comprido, uma palavrinha aqui, outra ali, até chegar na Cobrança. Disfarçou na mesa do Zé Sorveteiro, que tinha esse apelido porque o pai trabalhava na Kibon. Falou de futebol, da última do Zeca Pagodinho, e foi falando até seu olhar bater na novata. Parou de falar. Sentiu um leve tremor no coração, uma ponta de esperança brilhou em seu sorriso, e foi aí que o Zé Sorveteiro jogou a pá de gelo:

- Desencana. Ela é casada.

Filhão voltou à sua mesa sentindo que já não era mais o mesmo. Que mulher! Vira seus cabelos loiros, sua pele rosada, sua boca vermelha. Vira também suas mãos, de dedos longos, e unhas com esmalte incolor. Ela vestia uma blusa azul-marinho e um colar de perolinhas. Nessa noite Filhão ficou em casa. Sua mãe perguntou qual era o problema. Nenhum, respondeu o filho. A mãe não teve dúvida: - era coisa de mulher.


Filhão não chegou logo pra não dar na vista. Com as casadas tinha que ser cuidadoso, até que um dia subiram juntos no elevador. Só os dois, Filhão achou que era hora:

- Você é da Cobrança, né? Prazer, Filhomildes, da Importação.

- Eu sei, você é que é o tal de Filhão, não é?

- Como você sabe?

- Você é famoso...

- E o teu nome?

- Suzana. Tchau, prazer.

Filhão saiu do elevador e dirigiu-se à sua mesa como um autômato. Ela já sabia seu nome! Passou a manhã trabalhando no automático. Pegou-se escrevendo Suzana sem perceber. Controlou a vontade de chamá-la pelo interno. Lá pelo meio da tarde começou a cair uma chuva fina, dessas que não param mais. Seu telefone tocou:

- Filhão? É a Su. Não me leve a mal, a gente se conheceu hoje, mas será que você pode me dar uma carona na saída? Essa chuva vai acabar com meu cabelo...

- Claro, sem problemas, te espero na porta...

- Não, na porta não! Eu vou ficar até um pouco mais tarde, e te encontro virando a esquina, tá bom? Se não o pessoal começa a falar...

- Tá legal, te espero na esquina.

Filhão também passou um pouco da hora, esperou o pessoal sair, e só então foi para a garagem. O Santana estava limpo, ainda bem. Virou a esquina, parou, apagou as luzes e esperou. Logo ela chegou, simpática, sorridente:

- Obrigado, Fi, você é um anjo.

Fi. Ele já era "Fi". O trânsito estava lento, tiveram tempo para conversar. Ela morava na Freguesia do Ó. Não conhecia o Frangó. Não, agradecia o convite, mas não tinha tempo pra ir, hoje. Quem sabe outro dia... Pediu para descer um pouco antes de chegar em casa, "você sabe como são os vizinhos..."

As caronas foram se tornando mais constantes. Davam-se bem. Filhão achava que estava se apaixonando. Ela não dava pinta de nada, mas ele sentia que ali tinha coisa... Ela não gostava de falar da sua vida. Filhão só sabia que seu marido era um tal de Bide, e que trabalhava à noite. Até que um dia Filhão entrou com o carro num Drive-In. Suzana arregalou os olhos, "O quê você pensa que eu sou", e coisa e tal, mas acabou ficando e tomando uma Coca. Daí em diante, davam uma entradinha, ela tomava uma Coca, ele um uísque, até que se beijaram, e foi tamanha a paixão que decidiram levar o romance adiante, até as últimas conseqüências. As horas foram passando, ela chamou, resoluta:

- Vamos lá pra casa.

- Mas, como? E se o Bide chegar?

- Ele não chega. Só amanhã cedo. Eu garanto. Vamos, amor.

Filhão entrou meio ressabiado. A casa era modesta, um jardinzinho na frente, sala, dois quartos. Sobre a TV o retrato de um homem de bigode, olhar sério.

- Quem é?

- O Alcebíades.

Ela veio da cozinha com uma garrafa de cerveja, dois copos. Sentaram-se no sofá defronte à televisão. Suzana estava linda, o rosto ruborizado, a boca fremente, os olhos úmidos de ternura. Beijaram-se, ela soltou a gravata do Filhão, ele entreabriu sua blusa e viu os seios firmes e arfantes. Ela pediu:

- Vamos para o quarto? Filhão levantou logo, queria sair da frente do retrato do outro.

No quarto Suzana acabou de despir-se. Filhão olhava a mulher e seu corpo perfeito, e era assim que a queria doravante, para sempre, toda e somente sua. Ela pediu licença e foi ao banheiro. Filhão tirou o terno e abriu o guarda-roupa, em busca de um cabide onde pendura-lo. Foi então que viu a farda. Bem passada, impecável. Ficou com a calça e o paletó entre os dedos, imaginando o quê seria aquilo, quando Suzana voltou:

- Su, o quê é isto?

- É a farda do Bide.

- Ele é da PM?

- É. Sargento. Da ROTA.

Filhão tornou a vestir as calças. Calçou os sapatos. Lentamente, sem uma palavra, abotoou a camisa, deu nó na gravata. Sentada na ponta da cama, Suzana assistia sem dizer nada. Filhão foi saindo, paletó na mão, buscando as chaves do carro no bolso da calça. Ele já estava quase no portão, quando ela perguntou, pela janela da frente:

- Você me espera, amanhã? A gente pode ir pra outro lugar...

Filhão parou um instante, olhou para o chão, pensativo, e virou-se com o olhar cheio de melancolia:

- Acho que não. Estou com as férias vencidas, vou viajar um pouco...

Entrou no carro, deu a partida. Olhou as janelas em volta. Todas fechadas. Saiu sem acelerar muito. Não sabia se ia para a casa, ou para a vida. Só sabia que seguiria curtindo a solidão de quem está só, e vivo.

 
 

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