NÃO CHAME O TÁXI
Luís Augusto Marcelino
 

No momento em que relato essa história eu não sou mais eu. Na verdade sou eu, mas não em carne e osso. Só em osso. Faleci, fui pras ficas, fui ter com Deus, bati as botas, fui dessa pra melhor. Qualquer expressão dessas resume o que aconteceu comigo: morri. Ponto final. Sem reticências, sem exclamações, sem interrogações, sem dois pontos... apenas ponto final. E o pior de tudo é que eu não tinha planejado nada disso. Vou contar, tenha paciência.

Sou filho de portugueses nascidos na Ilha da Madeira. Talvez isso seja irrelevante para justificar minha morte, mas senti vontade de contar que meus pais atravessaram o oceano na metade da década de 50 e aportaram aqui nesta cidade. Uma mão na frente, a outra atrás. Vieram atrás de uma utilidade melhor para ambas as mãos. A Europa - e especialmente aquele pedaço de Portugal perdido nos mares atlânticos - não oferecia um mínimo de dignidade para artesãos, agricultores e demais trabalhadores braçais como o seu Alberto e a dona Maria. de Lourdes - que é o nome da minha mãe.

Chegaram em São Paulo, se instalaram numa pensão minúscula na região do Bom Retiro, usaram suas economias para comprar e revender cortes de tecidos de porta em porta pelas ruas da Zona Norte. Até hoje não entendo porque meu pai não quis entrar no ramo das panificadoras ou das batatas holandesas, mas isso não vem ao caso, novamente. Desculpem, caros leitores. Nunca levei jeito para essa coisa de escrever. Meu ramo sempre foi outro, mas senti necessidade de registrar em palavras o que me aconteceu na minha vidinha medíocre.

Pedro Roberto, meu irmão, já era nascido. Eu não passava de um espermatozóide reprimido nos testículos do meu pai quando ele conseguiu comprar seu primeiro comércio. Mesmo contra todas as perspectivas de se fazer sucesso no ramo - porque a comercialização de tecidos em São Paulo era uma atividade quase que exclusiva dos também imigrantes árabes e judeus - Alberto e Maria de Lourdes foram prosperando (a custa de sacrifícios cuja descrição não caberia em oitocentos e noventa e sete páginas) até se estabilizarem para ter o segundo filho; no caso, esse que voz escreve do Além.

Pedro Roberto morreu em 1982, logo após a ''Tragédia do Sarriá''. Mas não foi um ataque cardíaco fulminante nem outro mal provocado pelos gols do Paolo Rossi. Na ocasião, ele tinha um restaurante próximo à Rua da Consolação e resolveu fechá-lo mais cedo por causa dos inconvenientes naturais de torcedores bêbados traídos pela Seleção Canarinho. É fato que ele já tinha dinheiro suficiente para ter um bom carro, mas preferia andar de táxi. Acontece que seu motorista habitual - o Germano - ao ouvir pelo rádio, enquanto conduzia meu irmão para o Pari, o terceiro gol da Itália, simplesmente teve ele uma síncope repentina no meio da Avenida do Estado. Batata: foi de encontro a um muro no qual estava desenhada a bandeira do Brasil. Germano sobreviveu e assistiu a mais cinco Copas do Mundo. Meu irmão bateu a cabeça no asfalto irregular da via, quando saltou do Del Rey do taxista. É provável que tivesse sobrevivido se permanecesse no automóvel, mas resolveu pular e se fodeu. Azar. Uma fatalidade, talvez.

Está tudo meio confuso pra mim, peço desculpas mais uma vez por não ir direto ao assunto. Talvez esteja agindo assim pelo fato de que o tempo, agora, não tem muito significado, e eu me vejo no direito de não me preocupar com ele.

A morte do meu irmão teve algumas conseqüências: 1) descobri que o preço de um sepultamento nesta cidade é um verdadeiro absurdo; 2) meus pais perderam a vontade de viver e, três anos após a tragédia na avenida do Estado, também se foram; 3) com a morte de todos eles, eu fiquei rico pra caralho!

*****

Ontem eu tinha programado todas as minhas atividades de hoje. Tudo bem, a frase anterior não é um achado literário, mas foi exatamente o que aconteceu. Já lhes disse que não sou escritor, aliás não sou mais coisa nenhuma a não ser um amontoado de ossos se deteriorando aos poucos até um anjo de Deus vir me buscar. O problema é que talvez não seja um emissário do Senhor, e aí a barra vai pesar. Mas, voltando ao assunto, não vou me esforçar em escrever algo que lhes seja agradável. Vou me restringir apenas a contar o que me aconteceu hoje a partir do meu planejamento de ontem.

Cheguei em casa próximo da meia-noite. Minha mulher já adormecia em nosso leito de amor. Pela sua expressão sorridente, mesmo dormindo, devia ter dado para o Rodrigo, o vendedor bonitão da minha loja da Lapa. Fátima, minha esposa, cuidava dessa unidade da rede de casas que eu dirigia de um escritório no Centro. Eu sabia que ela dava para o Rodrigo, ela sabia que eu comia a irmã do Rodrigo, Sabrina. Contudo, vez ou outra, quando estávamos entediados de nossos amantes, transávamos.

Eu estava com vontade de transar com minha mulher porque, aquela noite, eu tinha realmente ficado trabalhando até mais. Mas resolvi não acordá-la. Ao invés disso, anotei na minha agenda as obrigações do dia seguinte.

Sempre tive o hábito de reservar um dia do mês para fazer qualquer coisa que não estivesse associada ao trabalho. Então eu iria à creche que ajudava pela manhã, disso eu não podia abrir mão. Em seguida, depois do almoço chinfrim que eu teria na própria creche (por mais que eles tentassem me agradar, sempre me serviam o cardápio mais deprimente da face da Terra: arroz, feijão, bife e salada de alface e tomate; eu comia, sorria... sorria, comia... mas meu paladar chiava) eu me encontraria com Sabrina, irmã do amante da minha patroa.

Sabrina e eu nos conhecemos em meu escritório. Ela era uma recepcionista de 20 anos de idade vinda da periferia. No primeiro dia em que a vi, ou melhor, em que vi suas pernas, falei pra mim o seguinte: ''tenho que lamber aqueles joelhos um dia...''

Até então jamais eu tinha traído Fátima. Acontece que Sabrina era absolutamente linda, mesmo trajando roupas deterioradas e sem se maquiar. Diferentemente das mulheres e moças da nossa classe, ela conseguia ser charmosa e envolvente sem os badulaques caríssimos dos shopping centers. Foram dois meses de investidas no início sutis, sem resultados. Até o momento em que abri o jogo para a jovem recepcionista:

- Se você sair comigo, te compro um carro.

Ela tinha a opção de recusar a oferta e me processar por assédio sexual. Mas não foi isso que aconteceu.

*****

Noites. Eu as aguardava como um menino esperando uma bicicleta no Natal. Nesses últimos anos eu saía com Sabrina quase todas as noites durante a semana. Fátima descobriu meu adultério em pouco tempo. Em vez de fazer escândalo, de me detonar, articulou uma vingança maquiavélica. Foi um dia ao escritório e conheceu Rodrigo, que tinha sido indicado pela irmã, Sabrina, para ser um assistente ralé. Mantiveram um caso por longos meses. Atualmente se encontram com menor freqüência. Fátima melhorou na cama desde quando o conheceu. Acho que esses acontecimentos fizeram bem a todos nós: a mim, à Fátima, a Rodrigo e a Sabrina (afinal ela ganhou um carro e foi a Fortaleza duas vezes, e passou a se vestir muito melhor).

Descobri que me tornei um impotente sexual há três meses, aproximadamente. Então resolvi despachar meu orgulho para a casa do caralho e me entregar, finalmente, aos encantos das pílulas de potência sexual.

Da janela do escritório avistei uma farmácia simpática na rua Libero Badaró. Disquei para o ramal de Sabrina e a intimei a sairmos dali a duas horas. Ela tentou se esquivar, mas cedeu ao meu apelo. Prometi que a levaria a um sítio de um amigo meu na região de Campinas.

Entrei no estabelecimento, pedi a pílula do amor, paguei e, ao vê-la em minhas mãos gigantes, mudei todos os planos. Parei num boteco, pedi um copo de água mineral, dirigi-me ao banheiro imundo e tomei a pílula. Naquela hora, resolvi que não levaria Sabrina para o sítio. Eu a devoraria ali no escritório mesmo.

Comecei a imaginar meu ato de despi-la sobre a minha própria mesa. Colocá-la de quatro, arrastar sua calcinha amarela (que eu já tinha visto) e penetrá-la com meu novo membro turbinado e habilidoso. Passei a sentir uma quentura no rosto capaz de provocar o estupro de uma gari que estivesse recolhendo os dejetos da cidade.

Foi então que resolvi voltar ao prédio.

- Pelo amor de Deus, Jesus! - repetia Germano. Justo ele, meu Deus?

Germano, o taxista que remetera meu irmão para o outro mundo, atropelou-me na Libero Badaró. Ele tinha acabado de desviar de um ônibus que freou inesperadamente em sua frente. Eu nunca tive filhos. Por causa de uma transa encerrei uma dinastia que meu pai tanto sonhou. Nossa família morreu. Desígnio de Deus. Ou simplesmente uma fatalidade. Por que Germano não se aposentou, merda?

 
 

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